- O Estado de S.Paulo
O câmbio, de fato, mata, e isso não é uma crítica ao regime de metas de inflação, como querem crer alguns
"A inflação aleija, mas o câmbio mata.” Não por acaso, a famosa frase de Mário Henrique Simonsen já foi citada incontáveis vezes, e é sempre lembrada quando há algum episódio de turbulência externa sacolejando os preços dos ativos de países emergentes. Nas últimas semanas vimos o derretimento de várias moedas em relação ao dólar, do peso argentino à lira turca, da rupia indiana ao real, do rublo à rupia da Indonésia.
Nenhum dos países afetados pelas fortes oscilações das taxas de câmbio em relação à moeda norte-americana tem mantido a fleuma. Todos adotaram algum tipo de intervenção, seja por meio de operações nos mercados de câmbio, seja por alterações na política monetária, seja por uma combinação de instrumentos. No Brasil, a decisão do Banco Central de manter a Selic em 6,50% e de intervir nos mercados tem sido chamada por alguns de “dominância cambial” da política monetária. O ponto é válido, mas a verdade é que o câmbio jamais deixou de ser variável das mais importantes na condução da política monetária, como bem dizia Simonsen.
Há vários aspectos que diferenciam países emergentes de países desenvolvidos, mas um dos mais importantes está no papel do câmbio, sobretudo do dólar. Tanto assim que quando turbulências nos atingem falamos em “alta do dólar”, não em desvalorização do real, embora sejam a mesma coisa. Para nós emergentes, o dólar é a moeda em que estão denominadas grande parte de nossas reservas internacionais, é a moeda que muitos países utilizam para constituir a poupança – caso de várias economias dolarizadas da América Latina como a Argentina, o Peru, a Bolívia – é a moeda em que empresas sediadas nesses países passaram a tomar cada vez mais empréstimos depois de crise de 2008, quando as taxas de juros em dólares ficaram ineditamente baixas.
Entre 2008 e o primeiro trimestre de 2016, as dívidas em dólares de empresas de países emergentes triplicou, alcançando cerca de US$ 25 trilhões, ou 110% do PIB dessas economias. É fácil ver como, em situação desse tipo, o câmbio mata: se a empresa tem dívidas em dólares e receitas em moeda local, altas abruptas do dólar – ou desvalorizações súbitas da moeda local – podem trazer prejuízos consideráveis. Inflação também traz danos, mas, se está tudo denominado em moeda local, essas perdas são mais fáceis de administrar do que as perdas cambiais.
Sabe-se há muito que mesmo países emergentes com regimes de metas de inflação não podem tirar o olho do câmbio, não completamente. Se o grau de repasse cambial – o quanto de uma desvalorização provoca altas inflacionárias por canais diversos, inclusive pelos efeitos que tem sobre os preços de produtos importados – for bastante alto, desvalorizações persistentes podem colocar em risco a meta de inflação.
No passado, não foram poucas as ocasiões em que o Banco Central brasileiro respondeu às altas do dólar com intervenções ou altas das taxas de juros. Talvez o episódio mais dramático desde que adotamos o regime de metas de inflação tenha sido na segunda metade de 2002, quando temerosos da frágil situação macroeconômica brasileira e do risco eleitoral então associado ao ex-presidente Lula, investidores estrangeiros orquestraram corrida contra ativos denominados em real, forçando o Banco Central a elevar subitamente as taxas de juros para mais de 26% ao ano. Para conter o tumulto, o governo brasileiro foi forçado, na ocasião, a recorrer ao FMI. Cabe ressaltar: tínhamos metas de inflação e câmbio flutuante, mas tivemos de adotar medidas que para algum observador incauto poderiam parecer a defesa clássica de um regime de câmbio fixo.
Nosso dilema de então lembra muito a situação da Argentina agora, a Argentina que elevou subitamente os juros para 40% ao ano e recorreu ao FMI com metas de inflação e câmbio flutuante. Por que? Porque as oscilações fortes do câmbio provocam tantos prejuízos em nossas economias expostas ao dólar – em maior ou menor grau – que a resposta não pode ser outra. O câmbio, de fato, mata. Isso não é uma crítica ao regime de metas de inflação, como querem crer alguns. Trata-se apenas de uma realidade conhecida há décadas, mas frequentemente esquecida. A meta de inflação é âncora nominal tal qual o câmbio – uma coisa colapsa na outra ante movimentos extremos do dólar.
Tudo isso dito e considerado, o fato é que o Brasil tem hoje posição bem melhor do que já teve no passado. O espaço de manobra para contornar extremismos cambiais é bem maior. Contudo, a frase de Simonsen jamais deixará de valer – para nós e para outros países emergentes.
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