- Folha de S. Paulo
Objetivo é cancelar tanto quem é culpado de pensar a coisa errada quanto aqueles que os defendem
Entre os vários ensaios de George Orwell dos quais gosto muito, um que me é especialmente caro pode à primeira vista parecer uma escolha surpreendente: é uma defesa de P. G. Wodehouse, escrita nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial, contra a acusação de ser simpatizante fascista.
Wodehouse era odiado por muitos na época, e com razão. Depois de passar o primeiro ano da guerra em prisão domiciliar na França ocupada, ele concordara em ir a Berlim para fazer transmissões na rádio nazista. Foi, como Orwell reconhece, uma das maiores proezas de propaganda política que Joseph Goebbels conseguiu realizar durante a guerra.
Orwell, é claro, era opositor ferrenho e constante do fascismo. Um dos primeiros a criticar Benito Mussolini e Adolf Hitler, ele via a causa antifascista como tão importante que se voluntariou para combater as tropas de Franco na Guerra Civil Espanhola, e tinha os ferimentos que o comprovavam. Então por que Orwell decidiu redigir um ensaio meticuloso em defesa de um escritor que traíra seu país e cuja mensagem política ele repudiava?
A resposta é simples: porque Orwell achou que o teor dos ataques era equivocado. “Poucas coisas nesta guerra”, ele insistiu, “têm sido mais moralmente repugnantes que a caça atual a traidores e colaboradores. Trata-se, na melhor das hipóteses, do castigo imposto a culpados por culpados.”
Por mais que Wodehouse pudesse ter sido ingênuo, egoísta ou até covarde, Orwell não o enxergava como colaborador ou como fascista em segredo. E, mesmo em uma sociedade em guerra contra um inimigo mortal, Orwell considerava tão importante o princípio de que não devemos participar de caças às bruxas ou condenar pessoas por crimes que elas não cometeram que se sentiu compelido a corrigir o que estava sendo divulgado, em defesa de um homem de quem tinha tão poucas razões para gostar.
Tenho pensado muito sobre esse texto nas últimas semanas porque a América está passando por uma série de caças muito mais tolas e menos bem fundamentadas a traidores e criminosos do pensamento.
Os exemplos são tão numerosos quanto bizantinos, e os leitores franceses devem agradecer à sua sorte por não terem que descobrir por que um eletricista em San Diego perdeu o emprego por colocar a mão para fora de sua picape da empresa; por que um analista de dados de uma organização progressista foi demitido por resumir um novo artigo no mais prestigioso periódico de ciência política do país em um tuíte, ou mesmo por que um editor sênior do jornal The New York Times foi demitido por deixar um senador publicar um artigo de opinião no jornal.
Mas o que é importante neste momento é que um conjunto de patrulhadores culturais está tentando impor uma ética de contágio. Sua ambição é não apenas cancelar aqueles que são culpados de pensar a coisa errada; também querem cancelar aqueles que os defendem –ou que simplesmente se recusam a repudiá-los com fervor suficiente.
De fato, a reação à carta sobre a necessidade de livre expressão assinada por mais de cem pessoas (entre as quais me incluo) e coberta extensamente na França também foi, sob muitos aspectos, mais interessante que o texto dela.
Pelo fato de algumas figuras controversas como J. K. Rowling terem assinado a carta, grande número de jornalistas destacados proclamou a culpa de todos os envolvidos. Uma jornalista chegou a escrever a seus chefes para alegar que, por ter assinado a carta, um colega havia criado “um ambiente de trabalho hostil”.
Dada a obrigação legal dos empregadores americanos de evitar esse tipo de situação em locais de trabalho, tratou-se essencialmente, apesar de declarações superficiais em contrário, de uma tentativa de fazer o jornalista em questão ser demitido por ter assinado ao lado de Rowling uma carta em apoio à livre expressão.
É por isso, portanto, que o ensaio de Orwell, normalmente visto por seus biógrafos como uma curiosidade de importância menor, tem importância tão imensa para o momento atual. Pois a obrigação de defender os injustamente acusados –mesmo quando são imperfeitos e mesmo quando é profundamente impolítico fazê-lo—é mais urgente hoje do que nunca. A capacidade dos escritores e jornalistas da América dizerem o que pensam depende disso.
*Yascha Mounk, o cientista social Yascha Mounk é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".
Tradução de Clara Allain
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