- Folha de S. Paulo
O mesmo tribunal mandar prender o acusado de roubar xampus e soltar o amigo do presidente destrói a credibilidade da Justiça
Analisada abstratamente, não é absurda a decisão de João Otávio de Noronha, presidente do STJ, que transformou a prisão preventiva de Fabrício Queiroz em domiciliar.
Prisões preventivas, pela legislação brasileira, deveriam ser excepcionais, só cabendo quando não houver outro modo de dar seguimento às investigações ou quando se provar que a liberdade do suspeito traz riscos como fuga, pressão sobre testemunhas ou perigo para a ordem pública. Especialmente durante a pandemia de Covid-19 e quando o investigado pertence ao grupo de risco, a substituição da preventiva pela domiciliar faz sentido.
Saindo do mundo das abstrações, o que choca no relaxamento da prisão de Queiroz é que Noronha, considerado rigoroso em matéria penal, tendo negado outros pedidos semelhantes durante a epidemia, tenha subitamente ganhado um coração de mãe.
Também atípico, o magistrado estendeu a domiciliar à mulher de Queiroz, Márcia Aguiar, que estava foragida. Fazê-lo não é proibido, mas lança o juiz num torvelinho lógico: o fato de ela estar foragida é a prova escancarada de que o risco de fuga era real, e a prisão preventiva, necessária.
A declaração de amor de Jair Bolsonaro ao ministro tampouco ajuda na imagem de juiz imparcial e desinteressado. Receio que esteja tendo início uma corrida bajulatória, em que candidatos a ocupar uma vaga no STF se envolverão em situações cada vez mais constrangedoras para ver quem se desdobra mais para adular o homem.
O ponto que queria destacar, porém, é o da credibilidade. Para a Justiça lograr seu objetivo consequencialista de refrear comportamentos criminosos, é preciso um mínimo de uniformidade nas decisões. Não dá para o mesmo tribunal mandar prender o acusado de roubar dois xampus e soltar o amigo do presidente envolvido num escândalo que pode atingir o Planalto.
Nada contra o relaxamento para Queiroz, mas que valha para todos.
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