quarta-feira, 15 de julho de 2020

Inflação em tempos normais e durante a pandemia – Editorial | Valor Econômico

A drástica recessão tira o fôlego dos preços

A inflação é aferida por medidas que refletem padrões de consumo sedimentados em um período determinado de tempo. A pandemia do novo coronavírus não apenas alterou o tempo percebido, com milhões de pessoas em drástico isolamento social, como os próprios padrões de gastos. Nessa mudança, a covid-19 pode ter jogado tanto a favor da deflação como contra, dependendo dos pesos adotados para a confecção de índices que reflitam para onde foi o consumo durante a pandemia. No Brasil, seu papel foi deflacionário, como o IPCA mostrou em abril e maio, em grande medida pela impossibilidade de que determinados itens fossem consumidos, ou foram consumidos em volume muito mais baixo do que em épocas normais. A medida da inflação usual e da inflação com as transformações provocadas pela covid-19 são diferentes. Por um dos raros cálculos ensaiados para o Brasil, a inflação oficial está em 2,13% em doze meses, mas por um ‘índice covid-19’ é maior em algo como meio ponto percentual.

O economista Alberto Cavallo, de Harvard, utilizou uma montanha de dados de compras de cartão de crédito e débito nos Estados Unidos durante a pandemia para montar uma nova “ponderação” de inflação com eles e compará-los à inflação oficial (CPI). Observou, por exemplo, que o CPI em doze meses encerrados em abril - o fundo do poço para a economia americana e também para a brasileira - foi de 0,35%, enquanto que seu “índice covid” foi de 1,06%. Estendeu depois esse experimento, com adequações necessárias, a 16 países, com algumas adaptações nos índices oficiais.

Os resultados não são um retrato exato da inflação corrente, mas se aproximam deles e indicam a direção real do índice em uma época excepcional. No caso do Brasil, a deflação mensal de abril, de -0,28%, se transforma em inflação de 0,20% na cesta covid-19. Em 12 meses, a diferença é mais nítida, de 2,1% no IPCA e 2,76% sob a nova medida. Com isso, a inflação brasileira não estaria de fato abaixo do piso da meta (2,5%). Cavallo apenas menciona números do Brasil, sem comentários. Uma das explicações é que o aumento do preço dos alimentos - com variação no ano de 4,09% até junho e 7,61% em doze meses - não só trouxe vida curta aos impulsos deflacionários provocados pela pandemia, como os suplantou depois. Uma implicação é que o IPCA também chegou ao fundo do poço em abril e maio, e seu caminho agora é para cima, com intensidade dependente da recuperação da economia.

A suposição de Cavallo em seu trabalho é que, por obrigar cidadãos de muitos países a se enfurnarem em casa, os efeitos da pandemia na mudança da cesta de bens e serviços que formam a inflação foram mais ou menos semelhantes em países bem diferentes. Pelo consumo observado durante o distanciamento social nos EUA, houve aumento significativo do peso de alimentação no domicílio, nas despesas com habitação (incluindo artigos de residência), de comunicações e de educação. O peso dos demais itens foi reduzido, com declínio muito acentuado, e óbvio, das despesas de transporte, além de recreação e vestuário.

O impacto mexeu ainda com o núcleo de inflação, que exclui exatamente alimentos e energia. Quando o núcleo da inflação foi positivo no mês, o índice covid foi mais alto que ele. Quando registrou deflação, como em abril (-0,46%), ela foi menor (-0,21%). A diferença é relevante. O núcleo do CPI em doze meses até abril foi de 1,43%, e pela mensuração alternativa atingiu 1,71%.

Movimento na variação dos preços das grandes categorias de produtos foram semelhantes no IPCA brasileiro, refletindo redirecionamento de gastos em resposta à pandemia. A alimentação foi inflacionária durante março, abril e maio, enquanto os não-alimentos foram deflacionários nesses três meses. Ao longo do tempo, as despesas com artigos de residência e comunicação tiveram variação positiva de preços, enquanto os preços de transportes desabaram, enquanto retrocediam os de vestuário, despesas pessoais e despesas com saúde.

A drástica recessão tira o fôlego dos preços. A tentativa de volta à normalidade elevou o IPCA a 2,13% com a reação dos preços de produtos (quase) não consumidos na pandemia. A folga vista no IPCA pode ser menor do que parecia. Para baixo, o impulso dos preços acabou, salvo no caso de improvável deflação dos alimentos. Isto dá conforto ao Banco Central para a redução “residual” da Selic e assegura inflação baixa e juro real perto do zero por bom tempo.

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