O termo “fake news” ganhou o mundo depois de identificar os esquemas de conteúdo fraudulento que ajudaram a levar Donald Trump à Casa Branca. Menos de quatro anos depois, há aqui no Brasil um inquérito no Supremo, uma CPI e um projeto de lei no Congresso dedicados ao tema. O universo da política já entendeu que a disseminação orquestrada de calúnia e difamação e a incitação ao ódio pelas redes sociais não são diversão inofensiva de adolescentes. As consequências podem ser trágicas, como demonstram o uso do Facebook para incitar um genocídio em Mianmar e o do YouTube por terroristas.
No Brasil, como revelou o “Fantástico” no último domingo, as redes de desinformação ligadas ao bolsonarismo têm raízes fincadas no Planalto. O padrão insidioso dessa organização repete o adotado nos Estados Unidos. Lá, Hillary Clinton foi falsamente acusada de práticas pedófilas numa pizzaria — e a pizzaria, atacada por um homem armado. Aqui, o youtuber Felipe Neto foi falsamente acusado de promover pedofilia — e também atacado em casa. Se esses casos extremos demonstram os riscos para os indivíduos expostos, para a sociedade a questão central é a sobrevivência da democracia, capturada, via campanhas de desinformação, por grupos que almejam sua destruição.
Regular de modo sensato e eficaz o ambiente digital envolve mediar
valores cardeais da democracia. De um lado, a liberdade de expressão. De outro,
a responsabilização dos que a usam para cometer crimes. Liberdade de expressão
não é liberdade para injuriar, caluniar e difamar impunemente. Nem para
promover discurso de ódio ou campanhas mentirosas contra a saúde pública. A
Constituição brasileira veda o anonimato justamente para que quem abusar seja
punido.
As redes sociais tornaram a regulação mais desafiadora, já que ampliaram o alcance das mensagens criminosas e, com frequência, permitem o acobertamento de seus autores. O projeto de lei das fake news, aprovado no Senado e em tramitação na Câmara, apesar das lacunas e dúvidas ainda em aberto, trata o desafio com sensatez.
Estabelece as obrigações de transparência das plataformas digitais em mais detalhe que as regulações rígidas da União Europeia. Prevê medidas contra robôs e comportamento tido como “inautêntico”, com a possibilidade de exigir que usuários se identifiquem em caso de violação. Determina regras razoáveis para contas de funcionários públicos ou autoridades. Impõe a identificação de quem pagar por propaganda ou “impulsionamento” de conteúdo (exigência já em vigor para campanhas eleitorais).
O artigo que desperta mais controvérsia dispõe sobre aplicativos como o WhatsApp, usados tanto para troca de mensagens quanto para campanhas. O PL acerta ao distinguir a comunicação pessoal (cujo sigilo deve ser preservado) da comunicação de massa. Impõe o armazenamento, por três meses, das informações relativas ao encaminhamento de mensagens que cheguem a pelo menos mil pessoas. Não do conteúdo. É o suficiente para rastrear a origem das criminosas, mediante ordem judicial. Trata-se de obrigação similar à imposta às telefônicas, obrigadas a guardar registros não por meses, mas anos.
Dois pontos ainda despertam dúvida. O primeiro diz respeito às regras adotadas para moderar conteúdo. Na prática, as plataformas regulam a liberdade dos usuários, pela forma arbitrária como suspendem contas, retiram posts do ar ou determinam seu alcance por meio de algoritmos secretos. O PL exige que os termos de uso prevejam regras para retirada e garantam a oportunidade de defesa.
Nos Estados Unidos, o Facebook cedeu ao Partido Republicano nas normas adotadas para posts de políticos. Questões como direito de resposta estão sujeitas a flutuações de humor. Não está claro como — nem se é possível — definir censura num ambiente privado, mas que exerce função de comunicação pública (daí a celeuma quando contas são suspensas, mesmo por ordem judicial).
A segunda dúvida é a extensão dos poderes do conselho criado para autorregulação das plataformas. O modelo, inspirado no caso alemão, tem o objetivo de dar agilidade à resolução de problemas imprevistos. A filosofia é adequada. O risco é a intervenção indevida numa atividade privada.
Há, por fim, uma lacuna fundamental. O projeto é omisso em relação à responsabilização das plataformas por danos causados por conteúdos, mesmo quando notificadas pelos atingidos. Fica mantido o espírito do Marco Civil, segundo o qual, na prática, as gigantes Google e Facebook nunca são consideradas responsáveis, mesmo que tenham sido essenciais para atos criminosos (e lucrado com isso).
O correto seria, como para a violação de direitos autorais, vigorar o dispositivo conhecido como “notice and take down”: a partir do momento em que informadas pela parte ofendida, elas deveriam responder pelos danos se decidissem manter o conteúdo no ar. É incoerente a lei ser mais branda com pedófilos, racistas, homófobos ou incentivadores do suicídio do que com piratas.
Apesar dessa omissão e das dúvidas, o projeto representa um avanço inegável na direção da transparência e na defesa da democracia. O Brasil não pode se furtar ao dever de manter um ambiente de debate público aberto, saudável e de ter os meios de punir quem se aproveita de brechas tecnológicas e jurídicas para minar a democracia.
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