- Folha de S. Paulo
Dispensa-se de pensar, mas exige-se vista grossa à traição das promessas de campanha
A vantagem de ser bolsonarista é a de que não é preciso pensar.
Basta ser. Ser bolsonarista é apoiar um discurso que encolhe a cada dia de
acordo com as conveniências de seu chefe. Como elas não param de surgir, o dito
discurso ameaça chegar à abstração pura, impossível até de ser entendido, o que
não fará diferença para seus adeptos. Se Bolsonaro decretar que seus seguidores
devem usar a cueca por cima das calças, eles obedecerão —o que facilitará
identificá-los e avaliar o seu peso real na população.
Ungido por essa aura de infalibilidade que eles lhe conferiram,
Bolsonaro tem traído uma a uma as promessas de campanha que hipnotizaram
seus eleitores.
O discurso anticorrupção, por exemplo, esfarela-se nas jogadas
para silenciar a Lava Jato, cuja defesa foi decisiva para elegê-lo. Só o
abandono dessa bandeira já devia bastar para intrigá-los —mas, como estes abdicaram
de pensar, Bolsonaro segue alegremente no esvaziamento dos órgãos de
investigação, no que é aplaudido em silêncio pelo PT. Pelo visto, essa súbita e
divertida identificação entre Bolsonaro e Lula não abala seus fãs.
Tal esvaziamento, comandado pelo funcionário que Bolsonaro
designou para a tarefa, o procurador-geral Augusto Aras, é necessário para proteger seus
novos aliados: os políticos de quem passou a depender para protegê-lo contra a
ameaça de impeachment. O pagamento desse apoio não se limita aos seus
eleitores, mas atinge todo o país, com a entrega de ministérios, conselhos e
estatais à "velha política" que ele dizia combater.
Outro mistério que passa ao largo de seus seguidores é que, ao
promover o desmatamento da Amazônia, o extermínio dos
povos indígenas pela ocupação de suas terras e a sistemática destruição de
áreas protegidas, Bolsonaro está beneficiando uma categoria bem específica de
negocistas. Isso ele não prometeu em campanha.
*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues
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