- O Globo
A obsessão do presidente Jair Bolsonaro por
informações dos serviços de inteligência faz com que se espalhe pela
administração federal uma tendência à bisbilhotice que nos aproxima
perigosamente de um estado policial.
Nada explica, a não ser esse ambiente, a existência
de uma lista de funcionários públicos considerados “antifascistas”, isto é,
opositores do governo, elaborada por uma tal de Secretaria de Operações
Integradas (Seopi). Na maioria professores e policiais.
Além de implicitamente admitirem que são fascistas,
os que organizaram a lista consideram que servidores públicos têm um dever de
lealdade ao governo a que servem. Não é à toa que a Controladoria Geral da
República editou recentemente uma norma técnica que proíbe servidores de usarem
as redes sociais para críticas a medidas do governo.
Comentários que possam gerar “repercussão negativa
à imagem e credibilidade à instituição” merecerão punição administrativa. Isso
quer dizer que, além de estarem sujeitos a uma censura nas redes sociais que
utilizam em nome pessoal, os funcionários públicos também não se sentirão
seguros para utilizarem os canais internos de reclamação.
Esse clima de espionagem foi ampliado por um
decreto editado na sexta-feira ampliando não apenas os quadros da Agência
Brasileira de Inteligência (Abin), mas o escopo de sua atuação com a criação de
um Centro de Inteligência Nacional que reunirá os órgãos do Sistema Brasileiro
de Inteligência (Sisbin).
Esses movimentos todos respondem à exigência do
presidente Bolsonaro naquela fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril de
ter um sistema de informações que não o deixe desprotegido. Vai daí, ao que
tudo indica, o ímpeto com que o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, se
jogou na guerra contra a Operação Lava-Jato, pretendendo centralizar em seu
gabinete todas as informações que foram coletadas nos últimos cinco anos de
investigações e denúncias.
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco
Aurélio Mello definiu bem a situação: compartilhamento tem que ter objeto
específico, senão vira devassa. O jurista Joaquim Falcão, em live promovida
pelo jornal Valor Econômico, chamou a atenção para o fato de que o governo
Bolsonaro pretende neutralizar órgãos que têm autonomia funcional garantida
pela Constituição, como o Ministério Público e a Polícia Federal que, por
sinal, foi o primeiro a sofrer uma interferência direta do presidente da
República que está sob investigação do Supremo.
Não tendo podido nomear o amigo de sua família,
delegado Alexandre Ramagem, para a chefia da Polícia Federal, Bolsonaro trocou
seu comando, provocando a saída de Sérgio Moro do ministério da Justiça, e
agora ampliou as atribuições da Abin, aumentando o poder de Ramagem nesse
universo, e na unificação dos serviços de informações do governo.
Esses movimentos só comprovam o acerto do STF ao
barrar a transferência de dados das companhias telefônicas na integralidade
para que o IBGE pudesse fazer pesquisas para o censo neste ano de pandemia. A
relatora, ministra Rosa Weber, disse que a medida provisória “não apresenta
mecanismo técnico ou administrativo apto a proteger os dados pessoais de
acessos não autorizados, vazamentos acidentais ou utilização indevida”.
Foi seguida por 10 dos 11 ministros do STF. O
ministro Lewandowski chamou a atenção para o fato de que a maior ameaça ao
regime democrático hoje é a crescente possibilidade de que governos
autoritários, de qualquer tendência ideológica, tenham acesso a dados pessoais
dos cidadãos. Escrevi aqui a favor desse compartilhamento, mas vejo hoje que
fui ingênuo. Não estava em análise ali a idoneidade e seriedade do IBGE como
instituição, mas um governo que não é confiável.
Há na Sicília uma caverna que o pintor Caravaggio
denominou de Orelha de Dionisio, não apenas por seu formato, mas principalmente
pela lenda que diz que o tirano Dionisio I de Siracusa usava a caverna como
prisão política dos dissidentes e, devido à acústica perfeita, ficava sabendo
dos planos dos opositores.
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