sexta-feira, 27 de novembro de 2020

César Felício - Outra vez, a tradição que se renova

- Valor Econômico

Mesmo se perder, Boulos muda de patamar político

A grande novidade da eleição paulistana este ano, Guilherme Boulos, mostrou em sua campanha a prefeito de São Paulo que velhas fórmulas dão certo quando reembaladas com nova roupagem.

Como candidato, Boulos lança mão de arquétipos encontrados na arqueologia eleitoral brasileira. Ele interpreta com maestria, por exemplo, um velho conhecido: o personagem que encarna o tostão contra o milhão, Davi contra Golias. É a vida simples na periferia, a modéstia no estilo de vida, com seu “Celtinha” prata que lhe serve de transporte, a parceria na chapa com Luiza Erundina, símbolo de um PT já perdido, guardiã da pureza e encantamento radical de uma estrela que se apagou.

No discurso, não economiza promessas. Fala em 100 mil “soluções de moradia” para a população carente, acena com auxílio emergencial, com a adoção de um modelo sul-coreano de controle da covid, com testagens em massa, e por aí vai. A fórmula é antiga. Chegou o amigo do povo, que vai governar para as pessoas, e não para o grande capital.

A inovação se deu sobretudo na forma. O eleitor jovem foi uma alavanca. Sua campanha conseguiu logo no início do processo 60 mil inscritos em grupos “orgânicos” de WhatsApp. Ou seja, grupos que recebem mensagens diretamente, e não reenvios. Isso deu a ele uma capilaridade inicial complementada por um Twitter com 1,1 milhão de seguidores (o perfil de Bruno Covas tem 58 mil) e um canal no YouTube com 139 mil inscritos. No segundo turno, avançou nesse eleitorado ao participar de um jogo eletrônico com o “youtuber” Felipe Neto.

Na periferia o MTST e a candidata a vice Luiza Erundina lhe deram alguma ossatura. O MTST tem 120 núcleos espalhados na cidade de São Paulo e ocupou, sem trocadilho, a maior parte dos cargos importantes na estrutura da campanha. Se a transferência de votos do PT para ele for bem sucedida, receberá alguma carne.

Boulos tentou ao longo do segundo turno explorar contra Bruno Covas a ligação do prefeito com o governador. Doria tem 47% e rejeição na capital e praticamente inexiste na campanha do tucano.

As pesquisas disponíveis mostram muitas dúvidas sobre o sucesso da estratégia do candidato do Psol. Bruno Covas tomou três vacinas para se garantir na periferia: o apoio de Marta Suplicy, que mesmo em decadência política ainda tem muito prestígio nos extremos da cidade, a chapa com Ricardo Nunes, dono de currais eleitorais na Zona Sul, e foco nas classes C/D/E em seu programa eleitoral. No espaço tucano na TV só se fala de CEU, novos hospitais, auxílio emergencial, programas de inclusão e todo o “check list” existente de política social.

Tem funcionado por ora: o tucano não perde pontos nos levantamentos do segundo turno. Oscilou um ponto para baixo no Datafolha.

Boulos é uma tradição que se renova. Manteve a esquerda paulistana em uma posição que ocupa desde 1988: o de ficar em primeiro ou segundo lugar em todas as eleições municipais. Não há isso em outras grandes metrópoles do Sul-Sudeste, como Porto Alegre, Belo Horizonte, Rio de Janeiro.

Ele já ganhou com as eleições deste ano, mesmo se perder para Bruno Covas, como tudo leva a crer. O Datafolha divulgado ontem, mostrando o tucano com sete pontos de vantagem, é um quadro de difícil reversão. Mas 40% de intenção de voto. significa que ele absorveu o eleitor petista e boa parte do eleitorado de Márcio França. Conseguiu agregar bastante.

Ele dobrou o PT em São Paulo, o que é fundamental para alavancar a relevância que passa a ter.

Na vigésima quinta hora, quando a votação no primeiro turno já havia sido iniciada, o caudilho maior do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, deu a senha para a cristianização do petista Jilmar Tatto. Ao votar em São Bernardo do Campo, o ex-presidente sinalizou em entrevista que o apoio de petistas a Boulos não era exatamente um problema.

Fica mais difícil, ainda que não impossível, Lula manter o PT no comando do campo oposicionista a Bolsonaro em 2022, caso continue inelegível. Aumenta a competição nesse campo, sobretudo diante do encolhimento do PT, evidente a qualquer um que queira ver.

Boulos jamais se colocou como alternativa a Lula da maneira agressiva como fez Ciro Gomes. Ele o faz de modo sutil. Aposta em uma decantação natural, em receber o espólio petista sem custo, ou com custo mínimo. Só entrou nessa eleição ao perceber que o ex-prefeito Fernando Haddad não aceitaria a incumbência de disputar pelo lado petista. Foi nesse momento que percebeu que iria se cavar uma cunha entre o partido e seu eleitorado. Boulos acredita que colherá os frutos já caídos. Falar publicamente do PT é algo que o deixa constrangido.

Caso perca neste domingo, um mundo de oportunidades se abre: pode ser o parceiro preferencial do PT em 2022, pode ser o seu substituto, pode ser deputado com uma votação consagradora, pode disputar o Palácio dos Bandeirantes. Caso ganhe, só lhe resta fazer um governo que consiga atenuar a frustração de um eleitorado com as expectativas infladas: precisará contornar um governo federal que politiza todas as questões que lhes chegam à mesa, um governador sequioso por viabilizar sua candidatura presidencial, a segunda onda da covid-19 que pode chegar sem a superação das consequências da primeira, além de uma Câmara de Vereadores hostil e prebendária.

Boulos ainda terá que lidar com aliados que o julgam muito mais radical do que ele de fato é. O candidato do Psol, caso ganhe, já sinalizou que procurará estabelecer uma convivência relativamente pacífica com fornecedores da prefeitura e com a indústria imobiliária. Quer repactuações sem ruptura. Como Boulos não fez a sinalização de moderação de modo transparente durante a campanha - talvez o fizesse caso tivesse aparecido à frente das pesquisas -, pode ter turbulência pela frente vinda de seus próprios aliados.

Mesmo que ganhe, Boulos estará de certa forma isolado. Seu sucesso terá poucos interessados, seu fracasso contará com muitos sócios.

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