Comunidade
tornou-se monumento à derrota de uma gestão pública pautada pela força
Uma
década depois da ocupação que deveria inaugurar nova etapa na política de
segurança pública, via Unidades de Polícia Pacificadora, e nas relações do
Estado com a favela, por meio de políticas sociais, o Complexo do Alemão perdeu
dez anos. A safra de investimentos públicos e privados, que, durante o governo
de Sérgio Cabral, agora preso e condenado por corrupção, deram em intervenções
urbanas, conjunto habitacional, cinema, agência bancária, filial de varejista
de eletrodomésticos, serviços de telefonia e TV por assinatura, hoje é vaga
lembrança. Abandonado, o teleférico, obra de mobilidade inspirada na
revitalização de Medellín, cidade colombiana outrora refém do tráfico de
drogas, tornou-se monumento ao fracasso de uma gestão pública pautada pela força,
em vez da inclusão social.
Amanhã, em sinal de que outra abordagem é possível, o jornal “Voz das Comunidades”, à frente Rene Silva, vai entregar em mutirão 16 mil livros a moradores do Alemão e do Complexo da Penha. A proposta brotou num tuíte em que o jovem empreendedor social manifestou a intenção de distribuir dez mil livros para marcar a efeméride. “Passaram-se dez anos e nada mudou. Então, quero dizer que a invasão que queremos é de educação”, resumiu. A Invasão dos Livros foi encampada por uma legião de aliados: da atriz Patricia Pillar ao rapper Emicida, da cantora Maria Rita ao humorista Helio de La Peña, da atriz Regina Casé ao cantor Leoni. Só a Bienal do Livro conseguiu 12 mil livros.
Quando
o Alemão foi cinematograficamente ocupado pelas forças de segurança, Rene era
um adolescente de 17 anos que fundara, cinco anos antes, o jornal comunitário
que virou referência para favelas Brasil afora. De dentro de casa, ele postava
notícias da intervenção. Assim, forjou a sólida rede de relacionamentos que,
até hoje, cresce. Ano após ano, ele, equipe e grupos de voluntários produzem
conteúdos e eventos que ajudam a desconstruir o estereótipo de que favelas são
espaços unicamente de violência, pobreza e carência de serviços.
No
início do ano, ciente da vulnerabilidade social decorrente dos efeitos
sanitários, econômicos e sociais da pandemia, formou, com o Coletivo Papo Reto
e a organização Mulheres em Ação no Alemão, o Gabinete de Crise do Alemão. Dali
saiu a tecnologia social que envolveu arrecadação, montagem de kits e
distribuição de alimentos, itens de higiene e água a famílias locais. A
iniciativa se estendeu por seis meses e beneficiou, com 13.667 cestas básicas,
mais de 54 mil pessoas. O Instituto Pereira Passos, órgão municipal de
estatísticas, estima em cerca de 66 mil o total de moradores. Até hoje, sai do
“Voz das Comunidades” o boletim diário de acompanhamento de casos e mortes por
Covid-19 em 25 favelas do Rio.
Não
faltam exemplos a provar que a sociedade civil produz caminhos não violentos
para recompor o tecido social rompido pela rotina de violência e violação de
direitos. Em maio, quando a recomendação das autoridades sanitárias era de
isolamento social, uma intervenção policial até hoje mal explicada deixou 13
mortos no Complexo do Alemão. Dias depois, João Pedro Matos Pinto, de 14 anos,
foi assassinado na casa da família no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo,
durante operação das polícias Civil e Federal. Outras operações em favelas
cariocas chegaram a interromper ações humanitárias que se multiplicaram nos
territórios. O PSB e um conjunto de organizações apelaram ao Supremo Tribunal
Federal. Na ADPF 635, que, desde o ano anterior, confrontava a política de
segurança que deixara o recorde de 1.814 óbitos cometidos por agentes da lei em
2019, conseguiram a suspensão das operações em favelas durante a pandemia. Na
decisão liminar, posteriormente confirmada pelo plenário, o ministro Edson
Fachin citou os ativistas Rene Silva, Raull Santiago, também do Alemão, e Buba
Aguiar, do coletivo Fala Akari.
A
decisão, no início de junho, provocou imediata queda nos homicídios, sem
interromper a redução de outros indicadores de criminalidade. As estatísticas
oficiais atestaram: 179 mortes decorrentes de intervenções policiais em abril,
130 em maio; em junho, após a liminar, 34; em julho e agosto, 50 por mês; em
setembro, 52. Em outubro, segundo mês de Cláudio Castro como governador no
lugar de Wilson Witzel, afastado por impeachment, a surpresa: 145 homicídios
cometidos pela polícia. O salto levou a nova arguição ao STF por descumprimento
da decisão da Corte. Ontem, o ministro Fachin cobrou explicações do governo
fluminense, condenado em 2017 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos a
elaborar plano de metas e política de redução da letalidade policial, e do
Ministério Público estadual, encarregado das investigações das mortes por
agentes da lei.
“O Alemão é o exemplo mais evidente de que, até aqui, a política de segurança vitoriosa no Rio de Janeiro foram as ações de confronto, a guerra às drogas com ênfase no varejo, na ocupação dos territórios, em vez do uso da inteligência para obstruir a entrada, principalmente, de armas”, constata Silvia Ramos, cientista social à frente do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC). Uma década depois, autoridades substituídas, modelo mantido, tragédia perpetuada.
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