É
preciso ocupar todos os espaços para se contrapor ao cercadinho de Bolsonaro
Ainda
muito jovem, estagiário, lembro-me de uma tarefa jornalística no Itamaraty. Com
a ajuda do poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt, Juscelino acabara de
lançar a Operação Pan-Americana. Era uma iniciativa regional, mas partia do
Brasil e, de certa forma, expressava o otimismo dos anos 1950.
No
mundo de hoje vejo muito movimento. Os Estados Unidos derrotaram Trump e se
preparam para voltar às alianças globais e ao Acordo de Paris. A Europa
movimenta-se e 15 países da Ásia e da Oceania, um terço do PIB mundial, acabam
de celebrar importante acordo sob a liderança da China.
No
meio de todo esse movimento, apesar da pandemia, é razoável perguntar pelo
Brasil. Jogamos todas as fichas numa relação com Trump, sempre desfavorável ao
País. E agora Trump foi para o espaço. Ficamos sós e espetacularmente
desarmados, como diria o poeta.
Um projeto especial como o desenvolvido com a Noruega e a Alemanha na Amazônia foi bombardeado por Bolsonaro e Salles. Perdemos investimentos, até para nos protegerem de incêndios na floresta e no Pantanal. Recentemente, numa live sobre os incêndios no Pantanal, autoridades de Mato Grosso lembraram que a modernização de sua estrutura de combate a incêndios dependia desse dinheiro. E não há nada no lugar, exceto o corre-corre do vice-presidente Mourão para seduzir os europeus e uma sensação vazia de nacionalismo no discurso de Bolsonaro. Nem Alemanha nem Noruega exigiam nada senão projetos sustentáveis.
Essa
escaramuça amazônica serviu de ensaio para os tropeços posteriores, troca de
farpas sobre incêndios e desmatamento – todo um processo que poria em risco o
acordo União Europeia-Mercosul. Alguns estadistas, como Angela Merkel, são
pragmáticos e têm grande boa vontade com o acordo. Mas a sucessão de erros e o
próprio processo destrutivo na Amazônia acabaram repercutindo nos Parlamentos
nacionais. E o acordo “subiu no telhado” enquanto Bolsonaro mantiver essa
política desafiadora e agressiva com a Europa.
Num
encontro do Brics, ele ameaçou denunciar países europeus que importam madeira
ilegal. Países não importam madeira, e sim empresas. Ele recuou, mas o tiro no
pé já estava dado, até porque ficou bastante evidente que as medidas que
afrouxaram as regras de exportação partiram do seu governo.
O
próprio Biden fez um aceno durante a campanha prometendo mobilizar US$ 20
bilhões para a Amazônia. Foi contestado por Bolsonaro, ironizado por Salles.
Bolsonaro ameaçou usar pólvora quando a saliva faltasse. Todos sabemos que não
há pólvora para isso no Brasil, os gastos maiores da Defesa são para manter o
pessoal, aposentados incluídos. Mesmo que houvesse mamonas como pólvora
alternativa, a verdade é que a ameaça foi ignorada diplomaticamente por Obama
quando instado a falar no assunto.
Da
mesma maneira, os chineses, nossos maiores parceiros comerciais, procuram
navegar ao longo das provocações como se não existissem. Eles têm projetos de
décadas, a julgar pelo que Kissinger descreve sobre a política chinesa. Devem
considerar Bolsonaro apenas um rápido acidente na relação bilateral. Ainda assim,
há temas que vão mobilizar.
No
apagar das luzes, Bolsonaro assinou o documento Clean Network, que teoricamente
deixa de fora os chinese na implantação da tecnologia 5G no Brasil. É o único
tema que irrita os chineses, pela maneira como a família Bolsonaro o trata,
classificando-os de espiões.
É
uma decisão que representa custos e assusta alguns parceiros nacionais. Suponho
que interesse também ao governo Biden. Mas Bolsonaro pensava em Trump quando
assinou. E ainda nem reconheceu o presidente eleito americano.
Ninguém
se assusta com isso porque, afinal, Bolsonaro nega a covid-19, a ciência, o
racismo, a corrupção nos gabinetes familiares, os incêndios na floresta. Ele é
um negacionista e de tanto negar acabará duvidando da sua própria existência. O
problema é como se comportar nesse vácuo, que pode durar dois anos.
Os
governadores da Amazônia uniram-se e podem representar uma alternativa de
negociação não apenas com a Europa, mas com os EUA, que agora têm um
representante específico para mudanças climáticas. Dificilmente deixará de pôr
a Amazônia em sua agenda. Outras iniciativas são possíveis. Cidades como as
capitais do Sudeste podem estabelecer também seus vínculos com o exterior,
sobretudo num momento em que a articulação das metrópoles do planeta tem muito
a contribuir para o combate ao aquecimento global.
É
preciso ocupar todos os espaços para se contrapor ao cercadinho de Bolsonaro.
Nele, por afinidades ideológicas, cabem apenas a Hungria e a Polônia. Muito
distantes e até modestas para nossas pretensões internacionais. No momento em
que se discute tanto o racismo estrutural no Brasil, uma revisão histórica em
nossa relação com a África abriria novas e inexploradas possibilidades.
Nos
anos 50 o otimismo nos abria para as Américas e para o mundo. Com o fim da
pandemia e a chegada da vacina, creio que esse movimento será de novo
irresistível e arrastará com ele os destroços do negacionismo, o rancor
paranoico de quem só vê perigo no mundo.
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