- O Estado de S. Paulo
Sabia da morte e a conhecia, mas fiquei surpreso com sua impositiva realidade
Eu a vi com o rosto de mármore, e os olhos para sempre fechados. Peguei no seu braço: estava como um pedaço de gelo. Sabia da morte e a conhecia, mas como ocorre na vida e no amor, fiquei surpreso com sua impositiva realidade.
Mario Batlha, meu querido amigo me pronunciou essas palavras neste Natal, no bar do Soares aqui em Niterói, no nosso encontro anual de velhos amigos – velhos pois todos temos mais de 89 anos.
Quando entramos no bar, os jovens atendentes sorriem, pois todo jovem gosta de ouvir histórias contadas por velhos. Elas revelam como somos tolos e antigos. E é preciso sentir-se esperto e moderno neste Brasil onde o sujeito que chama o outro de tosco não sabe o quão tosco ele é.
Vamos ao bar em busca da juventude que a amizade e o álcool – o espírito – fornecem. Bar tem a ver com alegria, piada, aventura e bebidas. É um espaço aberto e ambíguo, pois abriga e revela, permite sair e entrar sem pedir licença. É público no ambiente, mas suas mesas são como casas oferecendo a seus ocupantes uma certa privacidade.
Foi ali que meu querido amigo Mario Batalha me olhou com olhos marejados de lágrimas e eu o olhei de volta com meus olhos molhados e turvos de velho.
Perdi a esposa que o Dr. Alzheimer roubou de mim faz uma década, complementou ele numa explicação patética como ocorre em todo sofrimento.
Fomos ao enterro de Sueli, a infortunada esposa de Mario. Lé estava ele com suas roupas antigas, magro como um tuberculoso, triste como um profeta. Olhava para todos com a surpresa dos que descobrem que o mundo é feito de sofrimento e, naquele momento, ele o vivia integralmente. No centro daquele triste mundo, jazia sua mulher cercada de flores numa imobilidade de estátua. Era a presença da morte na antessala do cemitério, pois a casa dos mortos é um dormitório do qual os religiosos dizem que se desperta para o outro mundo.
Pessoas chegavam e saíam, repetia Mario com um sorriso sem graça no rosto. Eram amigos queridos e alguns parentes. Todos estavam tocados pela magia da morta, minha mulher que foi generosa e tranquila. Todos diziam que tivesse “força”, a palavra de conforto da época de Star Wars quando, de fato, ali nada tinha de naves espaciais. Muito pelo contrário, continuou Mario Batalha tragando seu uísque, ali ia-se para o fundo de uma cova, para dentro da terra de onde um o primeiro homem saiu. Um barro fosco e malcheiroso do qual nasceu Deus sabe como, um espírito voltado para cima. Um olhar para as estrelas e, eventualmente, para o sol que cega.
Calma Mario, disse com compaixão e afaguei suas mãos magras de velho. Tudo passa...
Todos os outros amigos e até o Boca Mole e seu marido concordaram. Estavam de bom humor e faziam intrigas alegres e bem-humoradas em honra ao amargor de Mario. Fulano dissse X de sicrano que, por sua vez, comentou Y de beltrano...
A conversa ia do bar ao cemitério. De um lado o álcool, que é um espírito que despertava; do outro, o espírito liberto da carne pronta a apodrecer e fazia chorar em impulsos sofridos, como um orgasmo maldito.
Eu olhava tudo como de fora, mas os laços de amizade me envolviam. Eu amo meu amigo Mario Batalha, um cara zangado, mas que jamais foi capaz de dizer um não. Um sujeito cuja generosidade é maior do que o Pão de Açúcar visto de Icaraí, e por isso sofria.
Dez anos de doença. Dez anos de sentimentos de culpa. Dez anos de lágrimas represadas. Subitamente, Mario Batalha tirou seu revólver 38 da cinta de oficial de infantaria da reserva devidamente aposentado e começou a atirar para cima, calmo, no Bar do Soares causando pânico, dando-lhe um ar jovem e ativo de puteiro animado. Fregueses ocasionais corriam, mas nós ficamos e bebemos ao surto do Mario. Era uma legítima manifestação de sua dor. Coisa singular e espalhafatosa, sem dúvida, mas não feriu ninguém, exceto algumas lâmpadas e garrafas que se quebram ou mudaram de prateleira. Tal como a esposa que fora linda e jazia inerme no seu caixão, prestes a ser enterrada no que me pareceu um enorme buraco.
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