Folha de S. Paulo
França e Austrália combatem coronavírus com
leis; no Brasil, é puro arbítrio
Na
França, só se entra em cinemas e museus com prova de vacinação ou teste
negativo —e logo a regra valerá para shoppings, cafés e restaurantes.
Na Austrália, nova rodada de lockdowns atinge a maioria da população, enquanto
a Europa volta à quase normalidade.
No Brasil, prefeitos cassam o direito
à imunização
dos chamados “sommeliers da vacina” —e recebem aplausos de ilustres
comentaristas. Interesse coletivo versus direitos individuais, em três versões.
Vacinar é direito individual ou dever
cívico? O
governo francês decidiu-se pela segunda alternativa.
Manifestações populares conduzidas pela
extrema direita ou pela extrema esquerda contestam o “arbítrio estatal”.
Há uma certa graça nas cenas de líderes extremistas, admiradores de Putin ou do castrismo, engajando-se na apologia dos direitos civis.
A diversão cessa quando eles cruzam o
limite do discurso delinquente para equiparar o “passe sanitário” à marcação
dos judeus com estrelas de Davi pelo regime nazista.
A resistência à vacinação estende-se por
mais de um terço dos franceses e, até o advento do “passe sanitário”, a
campanha de imunização seguia em ritmo inferior ao da maioria dos países
europeus. O alegado direito de recusar a vacina seria pago por mais óbitos
derivados da persistência da epidemia e empregos perdidos em renovadas
restrições sanitárias.
Nos
EUA, onde as hospitalizações concentram-se em estados com alta proporção de
eleitores de Trump e baixas taxas de imunização, governadores republicanos
ponderam a necessidade de imitar a lei francesa.
Ao
contrário da França, na Austrália faltam vacinas. Desde o início, a
ilha-continente adotou a estratégia de Covid-Zero pregada pelo fundamentalismo
epidemiológico. O governo decidiu que o vírus seria eliminado por meio de
lockdowns implacáveis —e, portanto, a imunização jamais figurou como
prioridade.
A vida acima de tudo: sob a tradução
australiana do interesse coletivo floresceram hotéis de quarentena vigiados por
forças policiais e cassou-se o direito ao retorno de cidadãos residentes no
exterior.
O fundamentalismo epidemiológico provou-se
errado. O coronavírus resiste a qualquer lockdown e, tudo indica, mesmo à
vacinação coletiva. A maioria das nações optou por conviver com o patógeno,
reduzindo radicalmente os contágios e hospitalizações pela imunização em massa.
A Austrália, porém, tornou-se refém da
doutrina de supressão absoluta do vírus, que vai se convertendo numa doutrina
de supressão absoluta das liberdades públicas por tempo indefinido.
No Brasil, como na Austrália, ainda faltam
vacinas — mas, ao contrário da França, e como atestado de mais um fracasso de
Bolsonaro, a resistência à vacinação é insignificante. O interesse coletivo
exige acelerar a campanha de imunização, o que se traduz no plano político pela
denúncia da sabotagem governamental na aquisição de vacinas.
Mas, em busca de um lugar ao sol, diversos
prefeitos trocaram de alvo, definindo cidadãos comuns que tentam selecionar
vacinas como inimigos do interesse coletivo.
Os
“sommeliers da vacina” não violam lei alguma quando circulam de posto
em posto à procura de seu imunizante preferido —e, no fim, desistem ou tomam a
vacina oferecida.
Já os prefeitos que registram seus nomes e
os transferem para o “fim da fila” violam seu direito à vacinação, cujo
exercício está regulado por regras impessoais de prioridade.
De fato, incorrem nos crimes de
discriminação e negação de atendimento de saúde. O interesse coletivo funciona,
no caso, apenas como álibi para a prática de um ato arbitrário capaz de render
pontos no tribunal das redes sociais.
Na França e na Austrália, distintas traduções do interesse coletivo são amparadas por leis votadas nos parlamentos. No Brasil, a punição aplicada pelos prefeitos é puro arbítrio. Bolsonaro perdeu; o bolsonarismo vive.
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