Folha de S. Paulo
Na ciranda dos Poderes, violência e
covardia viraram 'harmonia' e 'pacificação'
Elegemos um
delinquente político na esperança de que sua delinquência fosse
mal menor e na confiança de que teríamos aptidão para moderá-lo. Bastaria lhe
aplicar um choque de freios e contrapesos.
Apostamos em moderadores diversos:
militares comprometidos com a democracia; ministro cheerleader da Faria Lima;
ministro cruzado anticorrupção; notas de repúdio de Maia; centrão, Lira, Pacheco,
fracasso do voto impresso na Câmara etc.
Moderadores foram tão exitosos que no 7 de Setembro,
depois de tantas interferências e acossos presidenciais, depois de todo o
negacionismo mortífero, depois de rotinizar agressão a mulheres jornalistas,
depois de chamar ministro do STF de "pedófilo", "idiota" e
"filho da puta", Bolsonaro disse basta e prometeu desobedecer ao
tribunal. Respostas verbais vieram de presidente do STF, do TSE, da Câmara, do
Senado. Os tons variaram entre o protocolar e o quase protocolar.
Horas mais tarde, Bolsonaro
revelou em carta que nunca teve "intenção de agredir quaisquer dos
Poderes" e "harmonia" é determinação
constitucional; reiterou "respeito pelas instituições" e declarou
estar disposto a manter "diálogo". Muitos observadores notaram
"recuo estratégico". Se estratégico, o recuo é fake. Melhor ignorar o
recuo e investigar a estratégia.
Soube-se que o texto saiu das penas tristes de Michel Temer, coach maior do constitucionalismo new age, também conhecido como constitucionalismo do arreglo e do arrego, da negociação e do acordo, das notas de repúdio e das cartas de recuo. Abraçar slogans, desprezar ideias e entregar o seu contrário compõem nossa tradição ilusionista.
O constitucionalismo oferece anteparo à
democracia. Impõe limites ao poder e aos desejos das maiorias por meio da
separação de Poderes e da proteção de direitos. O constitucionalismo new age
vira a mesa e vende três iscas sedutoras: harmonia, pacificação e diálogo. E
substitui separação de Poderes por ciranda dos Poderes.
O coach formou discípulos que ocuparam a
presidência do STF. Cármen Lúcia sempre entoava ambição pacificadora. Toffoli
pedia diálogo, "clássica" separação de Poderes, pacto por reformas e
recebia visitas surpresa do presidente. Fux submeteu legalidade do
auxílio-moradia de juízes à mediação e tem opinado contra a judicialização da
política, sem definir o que entende por isso. "Temos
de acreditar na boa-fé de Bolsonaro", sugeriu Gilmar Mendes.
O espetáculo cirandeiro é incompatível com
o exercício da jurisdição. Jurisdição não tem responsabilidade de pacificar.
Juízes sabem que não é essa sua tarefa primária nem métrica de sucesso. Entre
aplicar a lei e promover a paz há uma distinção categórica. A relação entre uma
e outra é acidental e contingente, não necessária. Tarefas diferentes, por
instituições diversas.
O princípio da "divisão e harmonia dos
Poderes" estava nas constituições ditatoriais de 1967 e 1969. A
Constituição de 1988 prevê Poderes "independentes e harmônicos". Não
é da harmonia cirandeira que estão falando.
No constitucionalismo new age,
constitucionalidade se negocia, legalidade se permuta e interesse público de
qualquer tipo se transaciona. Indigência judicial disfarça violência. Urgência
constitucional se posterga com pedido de vista. Quem roda na
ciranda podem ser indígenas, mulheres, negros, os mortos por
Covid-19 ou pela polícia. Rodam também a civilidade e a própria democracia.
Quem se dá bem é o centrão magistocrático e o autoritarismo.
Nessa nova era, juiz constitucional janta e
canta para empresários, palestra para banqueiros e oferece acesso à justiça por
WhatsApp. Também barganha precatórios com ministro da Economia, pois a
reeleição do autocrata que prometeu fechar a corte precisa renovar auxílio aos
pobres. Podia-se pagar essa conta reduzindo orçamento paralelo do centrão ou
vetando anistia a devedores do Estado (como igrejas e criminosos ambientais).
Mas melhor evitar esse "conflito".
Diante de um criminoso serial, o
constitucionalismo responde com sanção jurídica (como cassação e prisão). O
constitucionalismo new age suprime a jurisdição e reage com rodas de conversa,
constelação milico-familiar, mantras meditativos e cânticos infantis. Não é
corrupção funcional, é pacificação. Repita.
"Ciranda, cirandinha, vamos todos
cirandar, vamos dar a meia volta, à colônia retornar". Namastê.
*Professor de direito constitucional da
USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa,
Ciência e Liberdade - SBPC
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