EDITORIAIS
É corrupção
Folha de S. Paulo
Ao condenar parlamentar por rachadinha, TSE
dá indicação jurídica e política
Não se deixe enganar pelo diminutivo. A
rachadinha —a apropriação, por parlamentares, de parte do salário de seus
assessores nomeados— “é uma clara e
ostensiva modalidade de corrupção”.
A definição é do ministro Alexandre de
Moraes e consta do voto de relator que ele proferiu num julgamento em que o
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou a inelegibilidade da ex-vereadora
paulistana Maria Helena Pereira Fontes. Ela acabou condenada por 7 votos a 0, e
o acórdão foi publicado na sexta-feira (10).
Esse poderia parecer um caso menor,
envolvendo uma quase anônima ex-parlamentar municipal, mas duas ordens de
razões fazem com que ganhe importância.
A primeira é jurídica. Apesar de a prática
das rachadinhas ser antiga e ostensiva, não há um precedente sólido do Supremo
Tribunal Federal para esse gênero de processo. A corte pretendia estabelecê-lo
no julgamento do deputado Silas Câmara (Republicanos-AM), acusado de reter
parcela dos salários dos servidores de seu gabinete.
O juízo teve início em novembro passado, mas, depois de dois ministros terem votado pela condenação, entendendo que a rachadinha constitui peculato, o ministro Kassio Nunes Marques pediu vista e o processo repousa em seus escaninhos desde então.
Evidentemente, o TSE não é o STF, mas as
cortes coincidem parcialmente. Como a Justiça Eleitoral não tem quadros
próprios, seu tribunal superior é composto por três ministros do Supremo, dois
do STJ e dois advogados apontados pelo presidente (a partir de lista sêxtupla
elaborada pelo Supremo).
Assim, o placar de 7 a 0 se torna
particularmente eloquente.
A segunda ordem de razões é política. Há
numerosas suspeitas de que a família Bolsonaro foi praticante entusiasmada das
rachadinhas. Já há um caso contra o primeiro filho, o senador Flávio Bolsonaro
(Patriota-RJ), que, entretanto, tem conseguido retardar os trâmites com base em
questiúnculas processuais.
Por força de uma decisão de Nunes Marques,
que preside a Segunda Turma do STF, um julgamento que poderia definir se Flávio
tem ou não direito a foro especial foi retirado da pauta nesta semana.
O segundo filho, o vereador Carlos
(Republicanos-RJ), acaba de ter quebrados seus sigilos fiscal e bancário no
âmbito de uma investigação sobre seu gabinete. Há indícios consideráveis de que
o próprio presidente era adepto da prática quando deputado federal. É algo que
poderá persegui-lo depois de deixar a Presidência e as imunidades que ela lhe
confere.
Ao definir a rachadinha como corrupção
clara e ostensiva, Moraes mostra que não há disposição de sua parte de aliviar
para os Bolsonaros. Que a Justiça siga seu curso.
Vão argentino
Folha de S. Paulo
Primárias mostram ampla rejeição ao
peronismo, após governo liberal sofrível
Se um mau desempenho da coalizão governista
já era antecipado nas eleições parlamentares argentinas em novembro, quando
metade das cadeiras da Câmara e um terço do Senado estarão em disputa, as
primárias realizadas no domingo (12) deram materialidade à rejeição da
gestão atual.
No sistema argentino, as primárias servem
como uma prévia qualificada, uma manifestação concreta dos humores da população
—que se mostram desfavoráveis para o presidente Alberto Fernández e o peronismo
que o sustenta.
No âmbito nacional, a coalizão
oposicionista Juntos por el Cambio obteve 40% dos votos, contra 31% obtidos
pela Frente de Todos, de situação. Regionalmente, a alteração é dramática, com
vitória da oposição em 17 das 23 províncias e na cidade de Buenos Aires. Há
apenas dois anos, o governo havia vencido em 19 províncias.
Na capital do país, os três candidatos que
disputam a liderança da oposição obtiveram 48,2% dos votos, ante 24,7% do
peronismo. Já o polêmico postulante libertário Javier Milei atingiu 13,7% com
sua pregação em favor do Estado mínimo.
O resultado prenuncia uma derrota em
novembro e uma potencial perda da maioria peronista no Senado, o que deve
dificultar o restante do mandato do presidente. O baque foi forte a ponto de
levar à renúncia de
cinco ministros, numa tentativa difícil de reverter danos no pleito
efetivo.
Começa a se imaginar mudança mais ampla nas
eleições para a Casa Rosada em 2023, que poderiam pender mais uma vez para os
liberais. Os resultados do governo são pífios na economia e pouco convincentes
no combate à pandemia.
Em 2020 a economia argentina encolheu 10%,
e a expectativa para este ano é de crescimento de não mais de 6%. Enquanto isso
a inflação permanece em torno de 50% ao ano, com enorme déficit público
financiado por emissão de moeda.
O receituário típico do populismo de
esquerda cobra sua conta. Nem mesmo o congelamento de tarifas públicas e
restrições às exportações de alimentos, como carne, conseguem conter os preços.
Não se vê coerência de gestão das políticas monetária e fiscal.
Depois do desempenho sofrível de Mauricio
Macri, a vida dos argentinos em nada melhorou com a volta do peronismo, que há
muito não oferece saídas viáveis para os enormes problemas do país.
Eleições e FMI desafiam governo argentino
Valor Econômico
A Argentina não saiu de sua enrascada, na
qual a desconfiança ativa na moeda nacional é parte central
Foram um enorme fiasco para o governo de
Alberto Fernández as primárias para as eleições legislativas de metade do
mandato. Seus candidatos foram derrotados em todas as províncias importantes do
país, inclusive a de Buenos Aires, reduto peronista fiel à vice-presidente
Cristina Kirchner. Se esses resultados se repetirem nas urnas, em 14 de novembro,
a Frente de Todos, governista, poderá deixar de ser a maioria relativa da
Câmara dos Deputados (115 parlamentares), onde entram em jogo 127 cadeiras e
perder a maioria absoluta no Senado (41 das 72 cadeiras), que será renovado um
terço. A situação para Fernández se tornará crítica durante o resto de um
mandato assolado por crises diversas.
As reações instintivas dos líderes
peronistas em circunstâncias muito adversas são a exacerbação das divisões
internas e a união em torno de medidas populistas. Agora não foi diferente.
Alberto Fernández deve anunciar hoje um pacote com reajuste do salário mínimo
(o último acordo, de 35% de reajuste, foi parcelado até fevereiro), das
aposentadorias e uma nova versão do auxílio emergencial.
O governo não tem espaço para gastos, mas
se escora nas emissões do Banco Central para sustentar déficits - no ano, até
metade de setembro, foram 850 bilhões de pesos, cerca de US$ 8,2 bilhões. O
mais importante para Alberto e Cristina, porém, é ganhar apoio político,
arrasado pela crise econômica e má condução da pandemia pelo governo.
As divisões internas vieram com força à
tona, em um governo em que elas vêm da origem. A líder popular e dona dos votos
é a vice-presidente, Cristina Kirchner. Há uma tensa ambiguidade sobre quem de
fato manda - isto é, se ela tem mais poderes que Alberto Fernández. O grupo de
kirchneristas duros, La Cámpora, fiel a Cristina, criticou a “mirada
fiscalista” do presidente como responsável pela derrota e querem uma imediata
reforma ministerial. Os ministros Martín Guzmán, da Economia, e Matías Kulfas,
do Desenvolvimento Produtivo estão com a cabeça a prêmio.
O presidente e a vice se reuniram na terça
à noite por mais de três horas para decidir formas de ação para evitar um novo
desastre. No dia da divulgação dos resultados, Alberto disse platitudes, como a
de que era preciso ouvir o recado das urnas e interpretá-lo. Contrariada,
Cristina não abriu a boca, mas sua atitude em eleições legislativas anteriores,
em desvantagem, foi a de aumentar apostas em medidas populares.
Após o encontro, o presidente argentino, em
cerimônia pública ontem, deu apoio a seu ministro da Economia. Pouco depois, os
ministros do Interior, Justiça, Ciência e Tecnologia e Habitat, todos ligados à
vice-presidente, colocaram seus cargos à disposição. O mesmo ocorreu na
província de Buenos Aires com o time do governador Axel Kicillof, ex-ministro
da Economia de Cristina Kirchner. A vice-presidente quer forçar o presidente a
fazer uma mudança contra sua vontade, o que pode ter graves consequências. Ela
também poderá se desvincular do governo e se candidatar à eleição presidencial
de 2023, se a nau do governo continuar afundando.
A discussão do Orçamento para 2022 enviado
hoje ao Congresso, resume dilemas econômicos do país. O presidente disse que
deu sinal verde à peça “dando como certo que no ano que vem não teremos que
cumprir compromissos externos”. Há, porém, uma fatura de US$ 19,2 bilhões a
pagar com o FMI que, no governo anterior, de Mauricio Macri, socorreu o país
com US$ 44,5 bilhões. As reservas argentinas são praticamente desse tamanho,
US$ 45,7 bilhões. A dívida do país é de US$ 269,5 bilhões.
O governo argentino não tem meios de
impulsionar produção e salários sem criar inflação (49%) ou reduzi-la
significativamente sem depreciar o peso (a distância entre câmbio oficial e
paralelo é de 85%). Na Casa Rosada, a negociação com o FMI parte do princípio
de que haverá espaço para gastos - e os peronistas querem que ele seja
generoso. As previsões apontam recuperação de até 7% este ano (ante queda de
9,9% em 2020) e de 2,5% em 2022. É pouco para diminuir o alto nível de pobreza
(44%), enquanto a inflação corrói o salário mínimo (29.160 pesos ante cesta
básica só alimentar de 29 mil pesos).
O governo de Macri foi péssimo, deu lugar ao dos peronistas, que prometeram mudar tudo, fracassaram em estabilizar a economia, erraram no combate à pandemia (mais de 113 mil mortes) e colhem a impopularidade. A Argentina não saiu de sua enrascada, na qual a desconfiança ativa na moeda nacional é parte central.
Um eficaz muro de contenção
O Estado de S. Paulo
A suspensão da abusiva medida provisória que alterava o Marco Civil da Internet é manifestação de que a Constituição está funcionando na proteção dos cidadãos
Depois de dois anos e meio de governo, bem
se sabe como Jair Bolsonaro funciona. Suas ações não são norteadas pelo
interesse público, tampouco estão circunscritas aos limites institucionais do
cargo. Apesar de ocupar a Presidência da República, sua perspectiva de atuação
mais se assemelha à de um mau vereador. O objetivo mais amplo que Bolsonaro
consegue alcançar é o de agradar a seus redutos eleitorais, valendo-se, se
necessário for, de meios explicitamente esdrúxulos.
A tática pôde ser vista no dia 6 de
setembro. Na véspera das manifestações governistas, Bolsonaro editou a Medida
Provisória (MP) 1.068/2021, alterando o Marco Civil da Internet para restringir
a exclusão de conteúdo e de perfis de usuários das redes sociais. Sem pudor,
Bolsonaro usou a caneta presidencial para modificar um marco legislativo
reconhecido internacionalmente por seu equilíbrio, resultado de longos anos de
trabalho do Congresso.
É desalentador ver essa atuação
presidencial. Trata-se do mais estrito exercício disfuncional do poder. Em vez
de trabalhar para resolver os graves e urgentes problemas do País, Bolsonaro
inventa novos percalços – e tudo isso para que seus seguidores possam
descumprir impunemente as regras das plataformas digitais.
No entanto, deve-se reconhecer que a
atuação de Bolsonaro contra os limites institucionais tem sido ineficaz. Não
significa que não seja grave ou que não produza efeitos deletérios sobre o
País. O fato a ser observado é que a separação de Poderes, com seu sistema de
freios e contrapesos, está funcionando. As manobras de Jair Bolsonaro estão
sendo devidamente interrompidas, como se constatou na terça-feira passada, com
a atuação do Senado e do Supremo Tribunal Federal (STF).
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, devolveu
ao Executivo a MP 1.068/2021, em razão de sua explícita inconstitucionalidade.
A devolução de MP é um ato forte, usado raríssimas vezes, mas que revela a
gravidade do abuso tentado por Jair Bolsonaro. A rigor, não é uma derrota
política em sentido estrito – a devolução de uma MP não se baseia em eventual
falta de apoio político dentro do Congresso –, mas o reconhecimento do caráter
acintosamente inconstitucional da medida editada.
“Há situações em que a mera edição de
medida provisória é suficiente para atingir a funcionalidade da atividade
legiferante do Congresso Nacional e o ordenamento jurídico brasileiro”, disse
Rodrigo Pacheco. A devolução da MP 1.068/2021 é a prova material de que Jair
Bolsonaro ultrapassa os limites constitucionais do cargo que ocupa. Não é uma
questão de interpretação jurídica ou de oposição política ao presidente da
República. Ao alterar o Marco Civil da Internet por meio de medida provisória,
Jair Bolsonaro fez o que a Constituição não lhe permite fazer.
No mesmo dia em que Rodrigo Pacheco
devolveu ao Executivo a MP 1.068/2021, outro freio constitucional funcionou
contra os desmandos de Jair Bolsonaro. A ministra do STF Rosa Weber deferiu
medida cautelar em sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade para suspender a
eficácia da MP abusiva.
Na decisão, Rosa Weber lembrou que a
Constituição proíbe a edição de MPs sobre determinadas matérias. “Tenho por
inequívoca a inviabilidade da veiculação, por meio de medida provisória, de
matérias atinentes a direitos e garantias fundamentais”, disse a ministra,
ressaltando que a MP 1.068/2021 disciplina o exercício de direitos individuais
nas redes sociais. “Estamos diante de hipótese na qual o abuso do poder
normativo presidencial está, aparentemente, configurado”, afirmou.
Mais do que simplesmente recordar limites
formais do cargo, a suspensão de ato abusivo do presidente da República é
manifestação de que a Constituição está funcionando em seu ponto mais
essencial: a proteção dos cidadãos contra os arbítrios do poder estatal.
Bolsonaro fala muito em liberdade, mas atua em sentido contrário. Felizmente,
existe a separação de Poderes, com instituições independentes e aptas a
defender a Constituição e a liberdade.
A retomada dos serviços
O Estado de S. Paulo
Atrasando a vacina, o governo retardou a reação de uma grande fonte de empregos
Com a vacinação e a retomada gradual das
atividades presenciais, como em restaurantes, hotéis e viagens aéreas, o setor
de serviços já acumulou nos 12 meses até julho uma produção 2,9% maior que a do
período anterior. Maior fonte de empregos, embora em grande parte informais, os
serviços poderiam ter avançado mais velozmente, com grande benefício para a
economia brasileira, se o poder central tivesse aderido mais cedo ao trabalho
de imunização. Desprezando as primeiras ofertas de vacinas, o Executivo
continuou tratando a saúde dos brasileiros com a negligência demonstrada desde
o início da pandemia. Apesar dos entraves, a produção de serviços cresceu 1,1%
em julho e avançou 5,8% em quatro meses. O volume de sete meses foi 10,7% maior
que o de um ano antes. Em julho, o setor alcançou um patamar 3,9% superior ao
da pré-pandemia, em fevereiro de 2020. Os números são da pesquisa mensal do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A recuperação tem sido, no entanto, muito
desigual entre os vários segmentos do setor. Em julho, só dois dos cinco
grandes grupos de serviços tiveram resultados positivos. O amplo conjunto de
serviços prestados às famílias teve crescimento mensal de 3,8% e superou por
76,3% o volume produzido um ano antes. O outro grupo foi o dos serviços
profissionais, administrativos e complementares, com expansão de 0,6% no mês e
14,1% em relação ao desempenho de julho de 2020. Os dois segmentos foram os
mais prejudicados no pior período da pandemia, no ano passado.
Mesmo depois do choque inicial, o surto de
covid-19 continuou afetando seriamente esses dois segmentos. A persistência do
problema é bem visível quando se considera o balanço de 12 meses. Nesse
período, o volume de serviços prestados às famílias foi 12,4% menor que o dos
12 meses terminados um ano antes. As perdas nos trabalhos de restaurantes,
bares e hotéis, incluída, naturalmente, a redução do turismo, estão
representadas nesses números. No caso dos serviços profissionais,
administrativos e complementares, as perdas foram menores, mas o desempenho em
12 meses foi negativo, com recuo de 1,9%.
Também muito afetado pelas limitações
sanitárias e pela crise do turismo, o transporte aéreo continua com recuperação
incompleta. Em julho, a atividade da aviação foi 95,8% superior à de um ano
antes, mesmo com recuo mensal de 7,8%. No ano, superou por 28,6% o desempenho
de janeiro a julho de 2021. Mas o acumulado em 12 meses foi 7,3% menor que o do
período anterior.
No caso dos serviços prestados às famílias,
a covid-19 afetou os dois lados do mercado, prejudicando a demanda e
enfraquecendo a oferta. “Alguns estabelecimentos fecharam e outros reabriram,
mas ainda não operam com plena capacidade”, comentou o analista Rodrigo Lobo,
do IBGE. Do lado da demanda, acrescentou, o avanço é prejudicado pela
estagnação da massa de rendimentos e pelo desemprego.
A recuperação do setor, apesar dessas
limitações, é explicável principalmente pelo desempenho dos segmentos de
serviços não presenciais, desde o primeiro grande impacto da pandemia. Esse
grupo inclui os serviços de tecnologia da informação, as atividades
financeiras, correio, a armazenagem e diversos trabalhos na área de
transportes.
O conjunto formado por transportes,
serviços auxiliares de transportes e correio produziu de janeiro a julho 15,7%
mais que um ano antes e acumulou expansão de 5,8% em 12 meses. Dentro desse
conjunto, o transporte aquaviário cresceu 10,7% nos 12 meses até julho. No
mesmo período, o grupo armazenagem, serviços auxiliares de transportes e
correio apresentou produção 9,5% maior que a dos 12 meses anteriores. A mesma
comparação apontou resultado positivo de 4,5% para o transporte terrestre.
Apesar da recuperação, o volume de serviços
ficou em julho 7,7% abaixo do recorde alcançado em novembro de 2014, embora
tenha sido o maior desde março de 2016. Uma retomada mais forte dependerá do
controle da pandemia e do aumento da renda familiar, prejudicada pelo
desemprego e pela inflação.
A obstinação dos arautos da jogatina
O Estado de S. Paulo
Legalizar os jogos de azar só beneficia criminosos, lobistas e quem explora a dependência alheia
O deputado Arthur Lira (PP-AL) tem
notabilizado sua atuação como presidente da Câmara dos Deputados pelo ritmo frenético
que impõe à tramitação de determinados projetos de seu interesse, ou de seu
grupo político, e que não raro passam longe das necessidades mais prementes da
sociedade, justo as que mais demandam uma ação assertiva do Poder Legislativo.
Alguns desses projetos chegam a colidir frontalmente com o melhor interesse
público. É o caso, por exemplo, do projeto que legaliza os jogos de azar no
Brasil.
Há poucos dias, Lira constituiu um grupo de
trabalho para desengavetar e dar novos contornos a um projeto de legalização da
jogatina que dormita na Câmara há alguns anos. A intenção do colegiado,
composto em sua totalidade por parlamentares favoráveis à legalização dos jogos
de azar, é votar o projeto em plenário ainda neste ano. Para ganhar tempo, o
grupo partirá do relatório que foi aprovado em uma comissão especial em 2016,
mas que não chegou ao plenário da Casa por divergências entre os próprios
lobistas sobre o texto. Com base naquele relatório, caso o projeto seja afinal
aprovado, serão legalizados no País os cassinos integrados a resorts, as
máquinas caça-níqueis, as apostas online, os bingos e o jogo do bicho, entre
outras modalidades de jogos proibidos. Uma temeridade.
Ao Valor, o líder do novo grupo de
trabalho, deputado Bacelar (Podemos-BA), justificou a pertinência do projeto
alegando que “o Brasil precisa de renda e emprego para ontem”. Ora, e quem
haveria de negar um dado da realidade? Essa é uma tática dos defensores da
jogatina ao longo de todos esses anos de tramitação, até aqui sem sucesso, dos
projetos de legalização: enfatiza-se a arrecadação de impostos e a geração de
empregos em defesa do projeto, mas, convenientemente, ignoram-se seus efeitos
perniciosos na vida de milhares, talvez milhões, de pessoas.
De forma obstinada, os arautos da legalização
dos jogos de azar falam em maciços investimentos nas áreas de saúde, educação e
segurança pública com os recursos advindos da arrecadação de tributos.
Entretanto, tudo não passa de uma artimanha retórica para dar uma demão de
decência a um projeto altamente corrosivo ao tecido social. Não há uma só voz
entre os defensores da legalização dos jogos de azar que aborde os aspectos
mais nocivos do projeto, entre os quais a facilitação da prática dos crimes de
sonegação fiscal, corrupção, lavagem de dinheiro, associação criminosa e
tráfico de drogas.
Na experiência histórica do País, não há um
momento sequer em que os jogos de azar não tenham sido explorados – legal ou
ilegalmente – em desfavor do Estado e da sociedade. Particularmente, os danos
pessoais causados pela jogatina são dramáticos. Há robustas evidências
científicas de que ludopatas são intencionalmente levados a um estado de transe
em que perdem a capacidade de autodeterminação, caindo em uma espiral de ruína
financeira, social e familiar. A degradação dos indivíduos pelos males da
jogatina será a degradação de toda a sociedade.
Malgrado as tentativas de fazer avançar a
legalização dos jogos de azar no Brasil terem fracassado ao longo dos últimos
anos, todo cuidado é pouco. Agora, além de a retomada do famigerado projeto
contar com a simpatia do presidente da Câmara dos Deputados, dois de seus
maiores entusiastas ocupam posições de destaque na alta esfera da República:
Ciro Nogueira (PP-PI), ministro-chefe da Casa Civil, e Fernando Bezerra Coelho
(MDB-PE), líder do governo no Senado. Convém lembrar, ainda, que na infame
reunião ministerial de 22 de abril de 2020, o ministro da Economia, Paulo
Guedes, também defendeu a legalização da jogatina. E em termos bastante chulos.
Ao fim e ao cabo, a legalização dos jogos de azar só fará bem aos lobistas, aos criminosos e aos interessados em explorar a dependência dos cidadãos em benefício próprio. Até aqui, a sociedade, de alguma forma, soube se resguardar desse retrocesso. O bom senso e o espírito público da maioria dos parlamentares devem continuar a prevalecer sobre a persistência das forças poderosas que sustentam um projeto perigoso desde a origem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário