O Estado de S. Paulo / Aliás
Combater expressões supostamente
‘racistas’, como se faz no Brasil, é de uma ignorância atroz, caracterizando
eugenia verbal
A essa altura do campeonato, com a polícia
da língua em ação repressora incansável, já nem faço ideia de como hoje, nas
Minas Gerais, as pessoas estão chamando o Aleijadinho, que, por sinal, era um
mulato (ou negro?) escravista.
E agora, que decretaram que a expressão
latina “doméstica” se refere a escravas negras e, portanto, seria afrontosa,
logo teremos campanhas contra as placas racistas de “embarque doméstico” que
vemos em nossos aeroportos.
Também não sei como racialistas neonegros
reagiriam à informação de que a palavra preto começou a ser acionada, com
referência a pessoas de pele escura, no Portugal do século 15. É um conceito
linguístico do colonizador. Vamos deixar de usá-lo?
O fato é que o combate a expressões
supostamente “racistas”, que ganha corpo por aqui, é de uma ignorância atroz.
Ponto de emergência do fascismo legiferante semiletrado que ameaça se impor
(graças à ignorância geral sobre a nossa história linguística) – e que também
chega a ser racista.
Como no caso do combate à expressão
“macumba”. A palavra é de origem banta, nos veio do kikongo e do kimbundo,
originalmente “makuba”, com o sentido de “reza” ou “invocação”. É racismo
querer banir palavras africanas da língua que falamos diariamente.
Além disso, surgiu a “língua” do x-@-e ou
“linguagem inclusiva”, que não inclui ninguém e exclui muitos. Pessoas com
dislexia, por exemplo. Pessoas semianalfabetas ou em processo de alfabetização,
também.
A “língua” do x-@-e, por sinal, já começa
querendo nos obrigar a falar não de língua portuguesa, mas de língux portuguesx
ou língue portuguese. No caminho da transformação do português numa pedreira
consonantal impronunciável.
E haja disparates.
A começar por uma trapalhada elementar:
gênero gramatical nunca foi gênero biológico. Basta pensar na dupla “cesto” e
“cesta”. Alguém já viu o sexo de um cesto ou de uma cesta? O que uma pobre
cesta tem a ver com “identidade de gênero”? Existem cestas “trans”?
É evidente que a diferença entre um barco e
uma barca é gramatical, não genital. E a vogal temática, em português, não
define gênero. Gênero é definido pelo artigo que acompanha a palavra. Sofá
termina em “a” e não é feminino.
Boa parte dos nossos adjetivos pode ser
masculina ou feminina, independentemente da letra final. E terminar uma palavra
com “e” não faz com que ela seja neutra. A alface que o diga.
A linguista Concepción Company, do
Instituto de Investigações Filológicas da Universidade Nacional Autônoma do
México, lembra que os que atribuem marcações de gênero à dominação patriarcal
branca no Ocidente deveriam saber que a língua árabe não tem marcador de gênero
e, no entanto, o patriarcado muçulmano é um fato.
No Afeganistão, as línguas oficiais, o
pastum e o farsi ou persa, não têm distinção morfológica de gênero. Todos são
obrigados a dizer “todes”. Há milênios. Deve ser por isso que a igualdade de
gênero reina entre os talebans.
O grave é que, não raro, ao colocar um
determinado vocábulo no index inquisitorial, os praticantes do eugenismo verbal
podem estar simplesmente apagando ou destruindo a experiência sociocultural que
se acumulou ali naquela palavra. O projeto totalitário do identitarismo é amplo
e sufocante.
Trata-se de colonizar a linguagem e o
discurso. Mais um capítulo do imperialismo cultural norte-americano em nossa
época. O portinglês, o franglais e o italinglese que o digam.
Os identitários vivem se autoproclamando
adversários irredutíveis do imperialismo e do colonialismo, mas alguém
acredita? Nada mais mimético do que esses militantes. Eles são totalmente
colonizados pelo trio norte-americano esquerda-academia-mídia.
DEMOCRACIA. Os Estados Unidos tomaram conta da internet, assentaram os termos da nova doxa planetária e fazem as réplicas locais falar a sua língua, repetir os “ideologemas” que consagrou e fazer o discurso determinado pela matriz. Não faz tempo, encontrei, no jornal El País, um artigo de Antonio Caño, “Un Proyecto Fallido”, onde se lia: “Que resta do projeto com que se iniciou nossa democracia? Apenas nada nos une. Nem sequer nosso idioma, que parecia até há pouco um valor intangível e neutro, está hoje fora do conflito ideológico... Não tardará o dia em que proponham retirar o nome do Instituto Cervantes para buscar uma figura supostamente mais inclusiva, alguém que represente melhor a todos os idiomas da Espanha, que a cada dia são mais”.
O quadro traçado nos faz pensar em nós
mesmos. Espanta, aliás, que os movimentos negros não tenham ainda cancelado
Machado de Assis, com seu elogio da beleza branca, seu desdém pela “cultura
negra” e seus ataques à capoeira.
Mas, enfim, estamos assistindo à emergência
da crença numa nova magia nominalista.
Ou ingressando no reino da onipotência do
palavreado. E o combate à cultura estabelecida invadiu o domínio idiomático.
As pessoas se dispuseram a agir sobre a
língua para mudar o mundo – quando, ao contrário, deveriam se dispor a agir
sobre o mundo para mudar a língua. Afinal, como sempre digo, as cores existem
não porque tenhamos palavras para elas. É o contrário. Existe um léxico das
cores porque, graças ao equipamento ótico luxuoso com que fomos premiados, o
mundo humano é colorido.
Roland Barthes observou certa vez que os
revolucionários de 1789 falaram em desmantelar tudo, menos a língua francesa.
Nenhuma comunidade humana existe sem a sua língua. Ela é a mais fundamental de
todas as instituições sociais. E línguas são cosmovisões milenares.
A língua possibilita, organiza e estrutura
o nosso entendimento do mundo. Ou, por outra, o mundo é visto nos termos de
nossas estruturas verbais. Sempre que toco nessas teclas, me repetem o truísmo:
tudo muda, as línguas também! Claro que as línguas mudam. Mas uma coisa é a
mudança processual ocorrendo, a partir da fala, dentro da lógica da própria
língua – a que vai de “vossa mercê” a “você”, por exemplo.
Outra coisa é a tentativa instantânea de
imposição ideológica, artificial, “desde fora”, de uma partícula ou
micropartícula verbal ou de uma justaposição de partículas – como em “amigxs”.
LABORATÓRIO. Coisas que nem sequer nascem
na fala, que é a prática da língua, mas na escrita político-acadêmica, brotando
de fórmulas discursivas geradas em tubos de ensaio, no laboratório dos novos
ideólogos da língua.
Maiakovski escreveu: “o povo, o
inventa-línguas” – e não “o ativista, o inventa-línguas”. A diferença está toda
aí.
Como bem viu o filósofo Adrien Louis, em
artigo recente no Figaro, o que estamos no dever de contestar é a tentativa
absurda de querer impor uma determinada instrumentalização ideológica da
língua. Esta é a questão central.
O argumento de Adrien se organiza em torno
desse problema. Diz ele que se o caráter desgracioso – le caractere disgracieux
– da escrita inclusiva é um fato evidente, isto apenas traduz a “ambição
original” do projeto.
A disgrâce esthétique “reflete bem
fielmente a obsessão moral que aquela escrita quer introduzir em nosso uso da
língua e, mais fundamentalmente, em nosso pensamento”.
Ou ainda: a disgrâce esthétique traduz uma
“intenção exorbitante”, no sentido mesmo de arbitrariedade que ultrapassa a
medida justa das coisas, qual seja a de “colocar deliberadamente a língua a
serviço de uma certa moral” – ou de “introduzir a pureza moral na textura mais
íntima de nosso pensamento”.
E tal “intenção exorbitante” não é dissimulada.
Encontrase sempre explícita na pregação dos militantes desse projeto de
eugenismo verbal. A partir do seguinte raciocínio: o dever primeiro de nossa
civilização não é liberar os espíritos, mas simplesmente prendê-los ao porto da
“boa ideologia”.
Adrien considera corretamente que a luta contra as discriminações e pela vitória da igualdade é a mais legítima de todas as lutas. Mas, em nome disso, não devemos sacrificar a espécie de liberdade que permite que o pensamento respire e floresça. Vale dizer – e este é realmente o ponto essencial –, o que os militantes da linguagem ou escrita inclusiva querem é “o sacrifício de uma palavra livre, em proveito de um pensamento constantemente vigiado”.
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