O Globo
Uma das memórias mais fortes da minha
adolescência é ser aprovado na universidade. Lembro bem da felicidade de ver
meu nome na lista e a mirada orgulhosa de meus pais por eu ter passado na
federal. Também lembro de me sentir realizado, como se tudo aquilo ali fosse
fruto exclusivo do meu trabalho. Mas eu, adolescente, estava errado: a
realidade não é exatamente assim.
Em um sentido muito básico, aquele meu
pensamento tinha alguma razão de ser. O provável é que, tudo o mais constante,
caso eu não tivesse estudado todo o tempo que estudei, não teria sido aprovado.
Existe algum mérito na aprovação.
Mas, nesse caso, manter tudo o mais
constante é enganador. Eu cresci numa família de classe média, com um núcleo
familiar estável e em que a educação sempre foi vista como prioridade. Se minha
circunstância fosse diferente (ou seja, nada mais constante), mesmo que eu me
esforçasse o mesmo (ou até mais), é bem provável que o resultado fosse diferente.
Nossas circunstâncias condicionam as chances que temos de alcançar determinados resultados. Alguns anos atrás, publiquei um artigo junto com Daniel Duque, hoje pesquisador da Escola Norueguesa de Economia, em que estimamos que um jovem de uma família com renda familiar de classe média baixa tinha 2% de chance de ingressar numa universidade pública.
Para um jovem de uma família muito rica, a
chance era muito maior: entre 30% e 40%.
Não faz sentido falar em mérito sem
considerar o ponto de partida.
Segundo dados do IBGE, quase metade dos
jovens vindos de famílias do quinto mais baixo da distribuição de renda sequer
termina o ensino médio. O menino da favela que chega na universidade tem muito
mais mérito do que o que cresceu em um bairro nobre.
Um dos mecanismos que explicam essa
discrepância é a tirania das baixas expectativas. Se não há ninguém ao seu
redor que segue determinada carreira, é improvável que você corra o risco de
ser o primeiro do seu meio a seguir aquele caminho.
Alex Bell e coautores demonstraram que esse
efeito realmente existe: crianças que se mudam para vizinhanças com mais
inventores têm maior probabilidade de se tornarem inventores quando adultos.
Outra explicação está relacionada ao
desenvolvimento cognitivo e emocional das crianças. Crianças que têm maior
acesso à nutrição e educação na primeira infância se tornam trabalhadores mais
produtivos, seres humanos mais saudáveis e cidadãos mais responsáveis.
No fim da década de 1960, foi conduzido um
famoso experimento educacional, hoje ligado ao prêmio Nobel de economia Jim
Heckman, chamado “Perry Preschool Project” (Projeto da Pré-escola Perry).
Pesquisadores sortearam quais famílias com crianças entre 3 e 4 anos de um
bairro pobre teriam acesso a uma pré-escola.
E eles colheram informações sobre essas
crianças, tanto as que foram à pré-escola quanto as que não foram, durante toda
a vida.
Em 2019, quando os participantes desse
experimento pré-escolar já estavam com mais de 50 anos, Jim Heckman e Ganesh
Karapakula fizeram uma nova avaliação dos resultados. As crianças que tiveram
acesso à pré-escola, em média, quando adultos: tinham salários mais altos;
alcançaram níveis educacionais superiores; foram encarceradas com menor
frequência; e tinham melhores indicadores de saúde.
Como a seleção foi aleatorizada, qualquer
efeito estimado pode ser corretamente interpretado como um efeito causal (não
apenas correlação) da pré-escola.
Recentemente, outro estudo feito por uma
equipe multidisciplinar de pesquisadores demonstrou que dar dinheiro para mães
pobres causa maior atividade cerebral em bebês. Eles usaram dados do programa
“Baby’s First Years” (Primeiros Anos do Bebê), que selecionava aleatoriamente
mães pobres para receber US$ 4 mil ou US$ 240 por ano.
Depois, avaliaram a atividade cerebral das
crianças com um eletroencefalograma. Resultado: os filhos das mães que
receberam mais dinheiro demonstraram maior atividade cerebral.
Tudo isso indica que, mesmo em uma idade
muito baixa, as circunstâncias socioeconômicas condicionam nossa vida.
Eu tive sorte: quando criança, pude sonhar.
Hoje tenho consciência de que a loteria do nascimento determina nossas
circunstâncias. E, segundo a melhor evidência disponível, nossas circunstâncias
condicionam o tamanho dos nossos sonhos. Reduzir a pobreza e investir em
educação, em especial na primeira infância, é dar às nossas crianças o direito
de sonhar.
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