O Globo
Depois de ter sido (a contragosto) a musa
da Bossa Nova e ter se lançado no projeto de ir além do barquinho e da flor, e
descobrir o Brasil do morro e do sertão, Nara Leão encontrou em Chico Buarque
um dos seus autores preferidos.
Dele, gravou “Olê olá”, “A banda”, “A noite
dos mascarados” e “Com açúcar, com afeto” — o melhor da produção inicial
daquele que viria a ser um dos maiores compositores brasileiros (se não o
maior).
Um dos momentos mais surpreendentes do
excepcional documentário “O canto livre de Nara Leão” é quando, candidamente,
Chico admite que renega “Com açúcar”, escrita a pedido da cantora. E não é que
considere pobre a melodia, fraca a letra. As feministas não gostaram e “Vou
sempre dar razão às feministas”, diz ele.
“Quando a noite enfim lhe cansa / Você vem feito criança / Pra chorar o meu perdão. (...) E ao lhe ver assim cansado / Maltrapilho e maltratado / Ainda quis me aborrecer? / Qual o quê / Logo vou esquentar seu prato / Dou um beijo em seu retrato / E abro os meus braços pra você.” Quantas mulheres não se enxergaram nesse espelho, e assim tomaram consciência da manipulação, do abuso?
“Mulher nenhuma precisa ser tratada assim”,
explica Chico. Mas assim precisa ser retratada, porque essa mulher e esse homem
existem, e a arte tem o papel de fazer refletir sobre a realidade.
Será que ele vai banir do repertório a
obra-prima “Toda noite ela diz pra eu não
me afastar / Meia-noite ela jura eterno amor / E me aperta pra eu quase sufocar
/ E me morde com a boca de pavor”, em que desnuda o vazio
desesperador de uma existência — e que as feministas poderão qualificar
de gaslighting?
O que fará se elas descobrirem a ainda mais
incisiva “Sem açúcar” (Dia útil
ele me bate / Dia santo ele me alisa. / Longe dele eu tremo de amor / Na
presença dele me calo / Eu de dia sou sua flor / Eu de noite sou seu cavalo)?
Será uma romantização da violência?
Verão objetificação do corpo feminino
em O meu amor / Tem um jeito
manso que é só seu / De me fazer rodeios / De me beijar os seios / Me beijar o
ventre / Me deixar em brasa / Desfruta do meu corpo / Como se o meu corpo fosse
a sua casa”?
E se não entenderem a ironia de Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
/ Sofrem por seus maridos, poder e força de Atenas? Se julgarem
homofóbico o Joga
pedra na Geni / Joga bosta na Geni / Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de
cuspir?
Se resolverem investir contra a lancinante
“Atrás da porta” (Dei pra
maldizer o nosso lar / Pra sujar teu nome, te humilhar / E me vingar a qualquer
preço / Te adorando pelo avesso / Pra mostrar que inda sou tua);
exigirem o “Não é não” das mulheres
que só dizem sim, em “Folhetim”, e o fim do desdém por Rosa (demente, falsa, vadia, bandida, espinho cravado
em minha garganta)?
Chico passou a ver opressão onde havia lirismo, empatia e denúncia. Nara, que sempre cantou livre, recusou rótulos, desdenhou panelinhas, talvez fizesse hoje, aos 80 anos, um belíssimo disco com essas canções — e ainda encomendaria mais uma, sobre a mulher que não se dobra nem se cala.
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