sábado, 29 de janeiro de 2022

Ligia Bahia: Como ficam os clientes sem a UnitedHealth?

O Globo

O anúncio da saída da empresa americana UnitedHealth do país é mais um sapo a ser engolido por uma parcela da população exaurida pelos dois anos de pandemia. Quem tem plano de saúde só consegue fazer testes para Covid-19 na rede privada com pedido médico e controle da quantidade, apesar do aumento das mensalidades.

O ingresso no país da empresa foi saudado como uma lufada de modernidade e qualidade que se espraiaria para congêneres nacionais. Não foi isso que se viu. Houve mudanças pontuais nos fluxos de informação das intrincadas gambiarras operacionais que vinculam assistência, remuneração e desfechos. Mas não ocorreram alterações na progressão, sempre acima dos índices econômicos, das mensalidades e na queda de braço com as negações de coberturas.

Entre a perspectiva de avanço na gestão por uma empresa americana e o suposto atraso e as especificidades brasileiras, prevaleceu o anacronismo. Um plano de saúde da UnitedHealth (ex-Amil) no Brasil é similar aos nacionais.

Mudanças ocorreram no país. Em 2012, o então diretor-executivo da UnitedHeath, Stephen J. Hemsley, declarou: “o Brasil emergiu como um mercado em constante expansão e evolução para o setor privado. Sua economia em crescimento, classe média emergente e políticas progressivas o tornam um mercado de alto potencial de crescimento. É a oportunidade mais atraente que vimos em anos”.

Em 2014, a empresa teve prejuízo. No início de 2015, perdeu a liderança para a Bradesco. Executivos designados pelos novos proprietários reclamaram dos desvios nas relações com prestadores de serviços, tais como cobranças fantasmas e preços superfaturados. Em 2019, a UnitedHealth encerrou as atividades da Optum, sua empresa de informações no país. Recentemente, se livrou da carga dos planos individuais (ainda que os mantenha sob administração do grupo) e anunciou a venda do conjunto de seus ativos.

O negócio, apresentado anteriormente como exemplar para outros países com renda média, não obteve o sucesso esperado. Entrar foi fácil, e a saída parece estar liberada. Será contratada uma empresa para avaliar o valor da venda. Contudo, dar bye-bye para mais de 3 milhões de clientes — que tiveram procedimentos eletivos adiados no país campeão na taxa de óbitos acumulados por Covid-19 por habitante — seria um gesto inequívoco de descompromisso com a saúde. Integrantes das cúpulas do Poder Executivo e um Legislativo convenientemente omisso, incluindo o Conselho de Defesa da Concorrência — que respaldaram e incentivaram a vinda do grupo econômico incondicionalmente, sem sequer estabelecer uma cláusula de tempo de permanência ou para o repasse de atividades de saúde —, deveriam impor critérios para a saída. A ANS, como sempre, se manifesta ubíqua e tardiamente. Solicitar informações depois que anéis já foram vendidos é um disfarce mal-ajambrado para o proposital fechar de olhos.

Para o mercado, as perguntas relevantes são: quem será o comprador? Como será a venda? Para os pacientes, as preocupações são de outra ordem, dizem respeito ao regime de acesso, garantia de continuar com os mesmos médicos, hospitais e laborátorios, que tenderão a ser substituídos. Um modelo tipo Prevent Senior, expurgado ou prenhe de impurezas ideológicas, está em pleno curso no país. Portanto, a principal preocupação é a manutenção dos contratos atuais. Será proposto um período de transição durante o qual a UnitedHealth segue responsável?

Desde a redemocratização, grupos empresariais da saúde têm sido direta ou indiretamente beneficiados com facilidades para obtenção de créditos, empréstimos, isenções tributárias, para realizar fusões e aquisições, construir unidades assistenciais, bem como controlar as instituições reguladoras. Os resultados são cristalinos: tragédia sanitária, mas prosperidade para alguns. Botar um pé na porta e negociar uma retirada que proteja a saúde dos clientes terá repercussões favoráveis para instituições governamentais que se apressam a carimbar o sim e se descuidam do não.

*Professora da Faculdade de Medicina da UFRJ

Nenhum comentário: