Folha de S. Paulo
Populistas não sobrevivem sem inimigos,
ainda que imaginários
Populistas não sobrevivem sem inimigos,
ainda que imaginários. A lealdade canina de seguidores precisa ser
constantemente instilada. Não surpreende que um presidente abertamente hostil à
Constituição tenha escolhido a instituição responsável pela sua guarda como
alvo preferencial de seus ataques.
As investidas contra o Supremo começaram
muito antes da posse de Bolsonaro. Quem não se recorda da intimidação
perpetrada pelo general Villas Bôas, caso o tribunal concedesse um habeas corpus
ao ex-presidente Lula, ou a ameaça feita por Eduardo Bolsonaro de
que bastaria
"um cabo e um soldado" para fechar o STF, se seu pai fosse
impedido de tomar posse.
A escalada de ameaças, que contou com
marchas e voos sobre o Supremo, culminou, em 7 de setembro último, com a
promessa do presidente da República, em meio a uma série de ameaças a outros
ministros do Supremo, de que não mais cumpriria decisões do ministro
Alexandre de Moraes.
Nesta sexta-feira (28), para regozijo de seus aduladores, Bolsonaro cumpriu sua promessa. Não compareceu à Policia Federal para prestar depoimento, em inquérito que apura sua participação em vazamento de dados sigilosos.
O fato é que Bolsonaro poderia ter
manifestado, quando convocado, sua indisposição para prestar o referido
depoimento, reivindicando o direito fundamental de não se autoincriminar. Mas
não o fez. Preferiu dizer que, "em homenagem aos princípios da cooperação
e da boa-fé processuais", atenderia ao ofício do Supremo.
Descumprindo sua própria disposição de
prestar depoimento, "mediante comparecimento pessoal", escolheu
desrespeitar decisão do Supremo. O recurso de última hora não apenas se
demonstrou intempestivo temporalmente, mas também logicamente, como salientou
Alexandre de Moraes. Testemunhamos, portanto, um confronto deliberado. Armado
pelo presidente, nas palavras de Miguel Reale Jr., para "afrontar a
administração da Justiça", o que caracterizaria crime de desobediência.
O Supremo Tribunal Federal, como já
afirmei em outras ocasiões, tem servido como a principal barreira ao
projeto de erosão constitucional colocado em marcha por Bolsonaro. Ao lado da
oposição parlamentar e de setores da imprensa e da sociedade civil,
comprometidos com a democracia e os direitos fundamentais, tem mitigado os
danos infligidos a diversas políticas criadas pela Constituição e pelas leis do
país, além de salvaguardar mecanismos centrais ao regime democrático.
A cada movimento do Supremo em defesa dos
direitos fundamentais, como no caso do direito à saúde dos cidadãos
brasileiros, ou de proteção do processo democrático, como ao investigar aqueles
que buscam subvertê-lo, o Supremo será objeto de ataques mais contundentes.
Ao invés de se acovardar, como tem ocorrido
em muitos países governados por líderes autoritários, o Supremo tem se
demonstrado cada vez mais disposto a não abrir mão de sua missão fundamental,
que é guardar a Constituição, o que não é uma tarefa fácil, graças às divisões
internas do tribunal. Sabem os ministros, no entanto, que a sobrevivência
institucional do Supremo depende da própria sobrevivência da democracia.
Essa postura responsiva também impõe aos
ministros fazer escolhas sobre as disputas que deverão priorizar. Bolsonaro
buscará distrair o tribunal, como fez nesta sexta-feira. Ao Supremo caberá
centrar o seu capital institucional em torno dos elementos constitutivos da
democracia brasileira, em especial da integridade do pleito eleitoral, pois
isso é o que mais aflige os inimigos da democracia.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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