Folha de S. Paulo
Quando a coisa aperta, é à imprensa
profissional que a sociedade recorre
Até onde você iria para eleger seu
candidato? Sempre polêmico, o filósofo Sam Harris deixou
a mídia de direita indignada ao afirmar que a grande imprensa teria agido bem
se tivesse escondido podres de Joe Biden para evitar que Donald Trump fosse
reeleito.
Embora Harris seja um realista moral, isto
é, sustente que existem verdades morais, e eu não vá tão longe, ambos bebemos
do consequencialismo, a ideia de que ações devem ser consideradas boas ou más
com base em seus resultados, não em princípios deontológicos abstratos.
Assim, concordaria em gênero, número e caso com Harris se julgasse que Trump (ou seu similar brasileiro) representa o mal absoluto (penso que ele é péssimo, mas ainda não o Armagedom) ou se estivéssemos tratando de uma interação única, isto é, se imprensa, eleitorado e candidatos se encontrassem uma só vez para definir um pleito e nunca mais se relacionassem. Nesse caso, o acobertamento midiático teria reduzido o volume de mal no mundo e fim da história.
O problema é que não estamos num cenário
desses, mas num de múltiplas interações, o que muda a lógica do jogo. Imprensa,
eleitorado e candidatos (ou outros representantes das mesmas correntes
políticas) não desaparecem depois de cada pleito, mas voltam a interagir em
eleições subsequentes. Aí, ações do passado cobram seu preço. Se a mídia é
percebida como um agente que não hesita em manipular pleitos para atender a
seus interesses (o que é diferente de errar de boa-fé), ela passa a ser vista
como não confiável e perde relevância. Detalhe importante, o custo de mentir é
maior para a imprensa do que para políticos.
Embora estejamos passando por um período
meio solipsista, no qual as pessoas curtem ficar presas a suas
bolhas argumentativas, a pandemia mostrou que, quando a coisa aperta, é à
imprensa profissional que a sociedade recorre para obter informação confiável.
Discordo, portanto, de Harris.
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