sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Luiz Carlos Azedo - Retrato de um homem político na guerra surda dos Poderes

Correio Braziliense

O ministro Alexandre de Moraes está diante de uma situação limite, na queda de braço com o procurador-geral da República, Augusto Aras. Precisa respeitar o devido processo legal

Não, não estou falando do extraordinário personagem da política francesa do final do século XXVIII, biografado pelo escritor austríaco radicado no Brasil Stefan Zweig, no livro Joseph Fouché — Retrato de um homem político (Zahar), lançado em 2015. Foi o políticos mais metamorfose ambulante que a história francesa conheceu, pois passou incólume pela Revolução Francesa e pela Era Napoleônica, derrotando Robespierre e o próprio Bonaparte. Escrito em 1929, o livro foi a antessala de outra notável biografia do mesmo autor, Maria Antonieta — retrato de uma mulher comum (Zahar).

“Os governos, as formas de governo, as opiniões, os homens mudam, tudo cai e desaparece no torvelinho veloz do fim do século, e só um homem fica sempre no mesmo lugar, em todos os postos, com todos os modos de pensar: Joseph Fouché”, resumiu o jornalista brasileiro Alberto Dines, no posfácio do livro, que classificou como uma “psicopatologia do poder”. Ex-seminarista, depois militante anticlerical, Fouché tinha a habilidade de andar pelas sombras, influenciar sem tomar à frente, se posicionar sempre do lado da maioria ou, no caso da Revolução Francesa, do líder do momento, sem nunca se posicionar ou tomar partido aberto até que um vencedor estivesse definido.

Quando a Convenção se preparava para votar pela execução ou não de Luís XVI, Fouché trazia no bolso do casaco um manifesto convicto contra a condenação do rei. Quando, por influência dos jacobinos, os deputados pediram a cabeça do monarca, Fouché proclamou a execução de Luís XVI como uma necessidade inevitável. Assim, atravessou o Diretório, o Consulado e o Império, contra Colott, Babeuf, Barras e Talleyrand. Nem Robespierre e próprio Napoleão escaparam de suas tramas. Fiel a si mesmo, durante mais de duas décadas muito conturbadas, sobreviveu a todos.

Nosso personagem é outro, trata-se do procurador-geral da República, Augusto Aras, que trava uma batalha surda contra o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, o novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Nos bastidores da Praça dos Três Poderes, com discrição e muita habilidade, tece uma aliança entre o presidente Jair Bolsonaro, o presidente da Câmara, Artur Lira (PP-AL), e o ministros da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, para isolar o Supremo Tribunal Federal (STF) e enquadrar Moraes, que preside o inquérito das fake news. Essa investigação é muito contestada no mundo jurídico, por atribuir poderes excepcionais ao seu relator no STF — o próprio Moraes — com base no regimento interno da Corte e não, supostamente, do ponto de vista formal, no Código de Processo Penal.

Aras teria feito a cabeça de Bolsonaro, do ex-ministro da Defesa Braga Netto e do atual, Nogueira, e de Lira, que é o homem mais poderoso do Congresso por causa da força do bloco parlamentar que lidera, o Centrão, do poder de pautar as votações da Câmara, e da distribuição de verbas do chamado “orçamento secreto”. Para esse grupo poderoso, o Supremo estaria usurpando atribuições dos demais Poderes. Em especial, o ministro Alexandre de Moraes, que acaba de assumir o TSE com amplo apoio no mundo jurídico e político em defesa das urnas eletrônicas.

Drible a mais

Empoderado pelo cargo e a ampla mobilização da sociedade civil em defesa do Estado Democrático de Direito, o ministro Moraes fez o que muitos estão considerando uma espécie de drible a mais: determinou, a pedido da Polícia Federal, uma operação de busca e apreensão contra um grupo de oito empresários que apoia o presidente Jair Bolsonaro desde a campanha eleitoral de 2018. Aras não foi consultado sobre a operação, realizada na terça-feira, embora o Ministério Público tenha sido informado formalmente por Moraes no dia anterior.

Candidato sujeito às regras do jogo da legislação eleitoral, Bolsonaro está sendo cauteloso ao tratar do assunto. A nova Lei do Estado Democrático de Direito, que substituiu a antiga Lei de Segurança Nacional, classifica como crimes ameaças, incitação ou ataque às instituições democráticas, ao Supremo Tribunal Federal (STF), ao sistema eleitoral e à separação entre os Poderes. Até agora, não foram divulgadas provas que justifiquem a ação determinada por Moraes, o que está provocando fortes reações nos meios jurídicos. A fronteira entre a liberdade de expressão e a ação conspiratória contra a democracia precisa ser estabelecida com provas materiais.

Comenta-se, nos bastidores, que Aras estaria incomodado pelo fato de um dos empresários ser seu amigo e interlocutor — supostamente, um dos celulares apreendidos teria o registro de mensagens entre ambos. Entretanto, o inquérito permanece sob sigilo de Justiça, ninguém sabe realmente se havia indícios que justificassem a operação.

Em um gesto inusitado, o ministro da Defesa, depois de uma reunião com Moraes sobre a segurança das urnas eletrônicas e participação das Forças Armadas nas eleições, levou Aras ao encontro com os comandantes das Forças Armadas, numa demonstração de solidariedade que politiza a relação entre ambos, indevidamente. Trocando em miúdos, Moraes está diante de uma situação limite, na queda de braço como Aras. Precisa demonstrar, com provas robustas, que seguiu as regras do devido processo legal ao autorizar a operação. Caso contrário, Aras emergirá da crise como prévio fiador do certo e do errado no processo eleitoral, embarreirando o presidente do TSE. Forte o suficiente para pontificar no jogo de poder, qualquer que seja o vencedor das eleições e o novo arranjo politico da Praça dos Três Poderes.

 

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