Correio Braziliense
O ministro Alexandre de
Moraes está diante de uma situação limite, na queda de braço com o
procurador-geral da República, Augusto Aras. Precisa respeitar o devido
processo legal
Não, não estou falando do extraordinário
personagem da política francesa do final do século XXVIII, biografado pelo
escritor austríaco radicado no Brasil Stefan Zweig, no livro Joseph Fouché —
Retrato de um homem político (Zahar), lançado em 2015. Foi o políticos mais
metamorfose ambulante que a história francesa conheceu, pois passou incólume
pela Revolução Francesa e pela Era Napoleônica, derrotando Robespierre e o
próprio Bonaparte. Escrito em 1929, o livro foi a antessala de outra notável
biografia do mesmo autor, Maria Antonieta — retrato de uma mulher comum
(Zahar).
“Os governos, as formas de governo, as opiniões, os homens mudam, tudo cai e desaparece no torvelinho veloz do fim do século, e só um homem fica sempre no mesmo lugar, em todos os postos, com todos os modos de pensar: Joseph Fouché”, resumiu o jornalista brasileiro Alberto Dines, no posfácio do livro, que classificou como uma “psicopatologia do poder”. Ex-seminarista, depois militante anticlerical, Fouché tinha a habilidade de andar pelas sombras, influenciar sem tomar à frente, se posicionar sempre do lado da maioria ou, no caso da Revolução Francesa, do líder do momento, sem nunca se posicionar ou tomar partido aberto até que um vencedor estivesse definido.
Quando a Convenção se preparava para votar
pela execução ou não de Luís XVI, Fouché trazia no bolso do casaco um manifesto
convicto contra a condenação do rei. Quando, por influência dos jacobinos, os
deputados pediram a cabeça do monarca, Fouché proclamou a execução de Luís XVI
como uma necessidade inevitável. Assim, atravessou o Diretório, o Consulado e o
Império, contra Colott, Babeuf, Barras e Talleyrand. Nem Robespierre e próprio
Napoleão escaparam de suas tramas. Fiel a si mesmo, durante mais de duas
décadas muito conturbadas, sobreviveu a todos.
Nosso personagem é outro, trata-se do
procurador-geral da República, Augusto Aras, que trava uma batalha surda contra
o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, o novo
presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Nos bastidores da Praça dos
Três Poderes, com discrição e muita habilidade, tece uma aliança entre o
presidente Jair Bolsonaro, o presidente da Câmara, Artur Lira (PP-AL), e o
ministros da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, para isolar o Supremo Tribunal
Federal (STF) e enquadrar Moraes, que preside o inquérito das fake news. Essa
investigação é muito contestada no mundo jurídico, por atribuir poderes
excepcionais ao seu relator no STF — o próprio Moraes — com base no regimento
interno da Corte e não, supostamente, do ponto de vista formal, no Código de
Processo Penal.
Aras teria feito a cabeça de Bolsonaro, do
ex-ministro da Defesa Braga Netto e do atual, Nogueira, e de Lira, que é o
homem mais poderoso do Congresso por causa da força do bloco parlamentar que
lidera, o Centrão, do poder de pautar as votações da Câmara, e da distribuição
de verbas do chamado “orçamento secreto”. Para esse grupo poderoso, o Supremo
estaria usurpando atribuições dos demais Poderes. Em especial, o ministro
Alexandre de Moraes, que acaba de assumir o TSE com amplo apoio no mundo
jurídico e político em defesa das urnas eletrônicas.
Drible a mais
Empoderado pelo cargo e a ampla mobilização
da sociedade civil em defesa do Estado Democrático de Direito, o ministro
Moraes fez o que muitos estão considerando uma espécie de drible a mais:
determinou, a pedido da Polícia Federal, uma operação de busca e apreensão
contra um grupo de oito empresários que apoia o presidente Jair Bolsonaro desde
a campanha eleitoral de 2018. Aras não foi consultado sobre a operação,
realizada na terça-feira, embora o Ministério Público tenha sido informado
formalmente por Moraes no dia anterior.
Candidato sujeito às regras do jogo da
legislação eleitoral, Bolsonaro está sendo cauteloso ao tratar do assunto. A
nova Lei do Estado Democrático de Direito, que substituiu a antiga Lei de
Segurança Nacional, classifica como crimes ameaças, incitação ou ataque às
instituições democráticas, ao Supremo Tribunal Federal (STF), ao sistema
eleitoral e à separação entre os Poderes. Até agora, não foram divulgadas
provas que justifiquem a ação determinada por Moraes, o que está provocando
fortes reações nos meios jurídicos. A fronteira entre a liberdade de expressão
e a ação conspiratória contra a democracia precisa ser estabelecida com provas
materiais.
Comenta-se, nos bastidores, que Aras
estaria incomodado pelo fato de um dos empresários ser seu amigo e interlocutor
— supostamente, um dos celulares apreendidos teria o registro de mensagens
entre ambos. Entretanto, o inquérito permanece sob sigilo de Justiça, ninguém
sabe realmente se havia indícios que justificassem a operação.
Em um gesto inusitado, o ministro da
Defesa, depois de uma reunião com Moraes sobre a segurança das urnas
eletrônicas e participação das Forças Armadas nas eleições, levou Aras ao
encontro com os comandantes das Forças Armadas, numa demonstração de
solidariedade que politiza a relação entre ambos, indevidamente. Trocando em
miúdos, Moraes está diante de uma situação limite, na queda de braço como Aras.
Precisa demonstrar, com provas robustas, que seguiu as regras do devido
processo legal ao autorizar a operação. Caso contrário, Aras emergirá da crise
como prévio fiador do certo e do errado no processo eleitoral, embarreirando o
presidente do TSE. Forte o suficiente para pontificar no jogo de poder,
qualquer que seja o vencedor das eleições e o novo arranjo politico da Praça
dos Três Poderes.
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