O Globo
Legalmente, Moraes estava dentro de sua
autoridade. Parece ter traído, porém, o espírito da Constituição
Nesta eleição, a constante ameaça à
democracia expressa pelo bolsonarismo impõe dilemas dificílimos a todos nós.
Qual o limite do seu direito de falar bobagem no WhatsApp? A diligência
da Polícia Federal, que entrou nas casas e escritórios de empresários
bolsonaristas que defenderam um golpe de Estado, é um dilema desses.
A PF obedeceu a um mandado de busca e apreensão emitido pelo ministro Alexandre
de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e se baseou nas conversas reveladas
pelo jornalista Guilherme Amado, do site Metrópoles. Moraes, pelo que se sabe
até agora, não teria nenhum elemento novo além das conversas explicitamente
golpistas.
Para esses homens, a opinião do eleitorado, a escolha da sociedade brasileira, é menos importante que suas preferências políticas — se o ex-presidente Lula vencer, que venha o golpe. Ocorre que não há lei contra falta de caráter. Não há lei contra desejar um golpe de Estado. Há, isto sim, lei contra trabalhar por um golpe. Estamos perante um problema filosófico que vai no âmago de que democracia temos. E de que democracia queremos.
Uma das ideias revolucionárias de John
Locke foi a propriedade privada. Essa noção, inaudita nos tempos do século
XVII, de que os soldados não podem simplesmente invadir sua casa porque o rei
desejou. A democracia liberal por que lutamos, por que devemos lutar, depende
de um Estado de leis. Em que todos somos iguais perante as leis. E em que só
indícios muito fortes de que leis foram quebradas pode justificar, aos soldados
do rei, que entrem pela força na casa de qualquer um.
Na sequência dessas ideias preciosas que
fomos juntando ao longo dos séculos, está o exemplo que John Stuart Mill deu
sobre o mercador de milho. Escrever um artigo desejando a morte do sujeito
responsável pela alta do preço do milho, pois ele leva gente pobre à fome, se
enquadra na livre expressão do articulista. Desejar a morte do mesmo
comerciante, perante sua casa e incitando uma turba já revoltada, é outra
coisa. A ideia expressa pode ser rigorosamente a mesma. Mas num contexto
encontrará leitores. No outro, ouvintes prestes a partir para a ação e de fato
matar o homem.
Os bilionários golpistas estavam em qual
situação? Esse é o dilema. Falando bobagem no WhatsApp, coisa que todo mundo já
fez? Ou de fato se preparando para financiar a ruptura da Constituição?
É o ponto em que lançamos mão dos filósofos
do século XX — Karl Popper e John Rawls, com suas leituras do Paradoxo da
Tolerância. Aquele momento em que uma democracia pode forçar a barra de suas
regras para impedir que seus inimigos a derrubem.
Bom não esquecermos isto: as ações do
ministro Alexandre de Moraes violam o princípio de Locke e não está claro que
as ações dos golpistas tenham violado o princípio de Mill. Nossa Constituição,
porém, é uma Carta com um pé sobre a base sólida de Locke, o outro na base
sólida de Mill. É uma Constituição de democracia que se deseja liberal.
Última ideia — esta de um pensador vivo.
Mark Tushnet e o Jogo Duro Constitucional ou, na tradução melhorada de Rafael
Mafei, Catimba Constitucional. A letra da lei é formalmente seguida, mas os
princípios que a originaram, não. Bolsonaro é craque em trair o espírito da
democracia sem formalmente cruzar a linha das leis. O mundo democrático passa
por uma pandemia desse tipo. Legalmente, Moraes estava dentro de sua
autoridade. Parece ter traído, porém, o espírito da Constituição. É por traição
continuada de seu espírito que democracias morrem no jeito contemporâneo.
O dilema, pois. Quem ataca democracia espera que democratas lutem com um braço amarrado atrás. Deveriam?
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