sábado, 8 de abril de 2023

Demétrio Magnoli - Missão em Moscou

Folha de S. Paulo

Lula escolheu um lado: acobertar crimes contra a humanidade

Discretamente, Celso Amorim visitou Moscou e conversou com Putin na sua célebre mesa sem fim. A finalidade alegada da missão era sondar caminhos para a paz. A finalidade real era cancelar a assinatura brasileira no Estatuto de Roma, tratado de fundação do Tribunal Penal Internacional (TPI). Lula escolheu um lado: acobertar crimes contra a humanidade.

Na diplomacia, momento é quase tudo. Bolsonaro sentou-se à mesa cerimonial de Putin em 16 de fevereiro de 2022, uma semana antes do início da invasão da Ucrânia. A visita provocou náuseas entre os brasileiros que dão algum valor ao princípio de respeito à integridade territorial das nações e contribuiu para o isolamento internacional do governo do golpista de extrema-direita.

Bolsonaro não tinha certeza de que a Rússia deflagraria sua guerra de conquista, mas as circunstâncias indicavam probabilidades elevadas. A gota d’água foi a declaração de "solidariedade" à Rússia. Lula, contudo, faz pior, mesmo sem usar a mesma palavra. Amorim foi ao Kremlin, representando Lula, apenas três semanas depois da emissão da ordem de prisão do TPI. O ato vale mais que mil discursos.

O Brasil está entre os 123 Estados-partes do Estatuto de Roma, que assumiram o dever de colaborar com as decisões do tribunal. A ordem de prisão decorre da acusação de crime contra a humanidade: a deportação em massa de crianças ucranianas para a Rússia. O TPI também emitiu ordem de prisão contra Maria Lvova-Belova, agente direta das deportações, que "adotou" (isto é, sequestrou) um adolescente da cidade ocupada de Mariupol.

A Rússia não participa do tratado e dificilmente Putin será preso enquanto estiver no poder. Entretanto, o gesto do TPI vai além do simbolismo: o mundo de Putin encolheu, pois o tirano corre risco de prisão se colocar o pé em qualquer um dos Estados-partes. A mensagem de Lula, escancarada na visita de Amorim, é que o governo brasileiro despreza o TPI: se Putin não pode vir ao Brasil, o Brasil vai até Putin.

A missão de Amorim em Moscou coincidiu com a de uma delegação oficial de dirigentes do PT, que participaram de evento promovido pelo Rússia Unida, o partido putinista, e se reuniram com autoridades do ministério do Exterior russo. Bolsonaro admirava o Putin nacionalista e ultraconservador, que impreca contra a "degeneração moral ocidental". O PT admira o líder da Rússia imperial que se exibe como inimigo geopolítico do Ocidente.

As duas visitas preparam o terreno para uma terceira, na mão contrária. Sergei Lavrov, ministro do Exterior russo, desembarca em Brasília em 17 de abril. Lavrov será recebido, antes, na Turquia. A diferença é que o governo turco faz a mediação do acordo de exportação de alimentos entre Ucrânia e Rússia, enquanto o brasileiro oferece sua solidariedade ao ditador incriminado pelo TPI. Se Putin não pode vir ao Brasil, convida-se sua imagem holográfica.

"O Brasil não quer ter qualquer participação no conflito, mesmo indireta", declarou Lula, justificando seu veto à exportação de munições de tanques à Alemanha, que transferiria os obuses à Ucrânia. A estranha "neutralidade" do governo abrange a oposição às sanções contra a nação agressora e ao auxílio militar para a nação invadida. Mas as missões moscovitas representam a ultrapassagem de uma fronteira crucial: o Brasil resolveu ter "participação no conflito", resgatando Putin da jaula diplomática construída pelo TPI.

O francês Emmanuel Macron foi à China para persuadir Xi Jinping a buscar uma paz justa, baseada na integridade territorial da Ucrânia. Lula prefere invocar a palavra "paz" para alinhar o Brasil à Rússia e dar um banho de loja em Putin. Os aliados e admiradores do presidente brasileiro permanecem silenciosos. O que eles diriam se fosse Bolsonaro o responsável pela cumplicidade do Brasil com o autor de crimes contra a humanidade?

 

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