Folha de S. Paulo
Lula escolheu um lado: acobertar crimes
contra a humanidade
Discretamente, Celso Amorim
visitou Moscou e conversou com Putin na
sua célebre mesa sem fim. A finalidade alegada da missão era sondar caminhos
para a paz. A finalidade real era cancelar a assinatura brasileira no Estatuto
de Roma, tratado de fundação do Tribunal Penal Internacional (TPI). Lula
escolheu um lado: acobertar crimes contra a humanidade.
Na diplomacia, momento é quase tudo. Bolsonaro sentou-se à mesa cerimonial de Putin em 16 de fevereiro de 2022, uma semana antes do início da invasão da Ucrânia. A visita provocou náuseas entre os brasileiros que dão algum valor ao princípio de respeito à integridade territorial das nações e contribuiu para o isolamento internacional do governo do golpista de extrema-direita.
Bolsonaro não tinha certeza de que a Rússia deflagraria
sua guerra de conquista, mas as circunstâncias indicavam probabilidades
elevadas. A gota d’água foi a declaração de "solidariedade" à Rússia.
Lula, contudo, faz pior, mesmo sem usar a mesma palavra. Amorim foi ao Kremlin,
representando Lula, apenas três semanas depois da emissão da ordem de prisão do
TPI. O ato vale mais que mil discursos.
O Brasil está entre os 123 Estados-partes
do Estatuto de Roma, que assumiram o dever de colaborar com as decisões do
tribunal. A ordem de prisão decorre da acusação de crime contra a humanidade: a
deportação em massa de crianças ucranianas para a Rússia. O TPI também emitiu ordem
de prisão contra Maria Lvova-Belova, agente direta das deportações, que
"adotou" (isto é, sequestrou) um adolescente da cidade ocupada de
Mariupol.
A Rússia não participa do tratado e
dificilmente Putin será preso enquanto estiver no poder. Entretanto, o gesto do
TPI vai além do simbolismo: o mundo de Putin encolheu, pois o tirano corre
risco de prisão se colocar o pé em qualquer um dos Estados-partes. A mensagem
de Lula, escancarada na visita de Amorim, é que o governo brasileiro despreza o
TPI: se Putin não pode vir ao Brasil, o Brasil vai até Putin.
A missão de Amorim em Moscou coincidiu com
a de uma delegação oficial de dirigentes do PT, que participaram de evento
promovido pelo Rússia Unida, o partido putinista, e se reuniram com autoridades
do ministério do Exterior russo. Bolsonaro admirava o Putin nacionalista e
ultraconservador, que impreca contra a "degeneração moral ocidental".
O PT admira o líder da Rússia imperial que se exibe como inimigo geopolítico do
Ocidente.
As duas visitas preparam o terreno para uma
terceira, na mão contrária. Sergei Lavrov, ministro do Exterior russo,
desembarca em Brasília em 17 de abril. Lavrov será recebido, antes, na Turquia.
A diferença é que o governo turco faz a mediação do acordo de exportação de
alimentos entre Ucrânia e Rússia, enquanto o brasileiro oferece sua
solidariedade ao ditador incriminado pelo TPI. Se Putin não pode vir ao Brasil,
convida-se sua imagem holográfica.
"O Brasil não quer ter qualquer
participação no conflito, mesmo indireta", declarou Lula, justificando seu
veto à exportação de munições de tanques à Alemanha, que transferiria os obuses
à Ucrânia. A estranha "neutralidade" do governo abrange a oposição às
sanções contra a nação agressora e ao auxílio militar para a nação invadida.
Mas as missões moscovitas representam a ultrapassagem de uma fronteira crucial:
o Brasil resolveu ter "participação no conflito", resgatando Putin da
jaula diplomática construída pelo TPI.
O francês Emmanuel Macron foi à China para
persuadir Xi Jinping a buscar uma paz justa, baseada na integridade territorial
da Ucrânia. Lula prefere invocar a palavra "paz" para alinhar o
Brasil à Rússia e dar um banho de loja em Putin. Os aliados e admiradores do
presidente brasileiro permanecem silenciosos. O que eles diriam se fosse
Bolsonaro o responsável pela cumplicidade do Brasil com o autor de crimes
contra a humanidade?
Nenhum comentário:
Postar um comentário