sábado, 8 de abril de 2023

Marcus Pestana* - A grande convergência possível e necessária

Visitamos até aqui o universo teórico e ideológico das principais correntes de pensamento que inspiraram projetos políticos e experiências de poder no mundo moderno.  

Analisamos criticamente, de forma um tanto sumária e resumida, as principais matrizes teóricas que dominaram o universo do pensamento humano e inspiraram a ação política desde o Século XVII: conservadorismo, liberalismo, comunismo, socialdemocracia, fascismo, socialismo democrático e populismo autoritário.

O mundo hoje é outro. Grandes transformações ocorreram. Fim da Guerra Fria, dissolução do bloco soviético, globalização econômica, radical e veloz revolução científica e tecnológica, emergência das plataformas digitais e das redes sociais, aparecimento de novos players globais como a China, crise da democracia liberal, mudanças radicais do mundo do trabalhado, radicalização do fundamentalismo islâmico, desafio da imigração em massa de populações pobres, sobretudo para a Europa, e o consequente fortalecimento do nacionalismo xenófobo de extrema-direita, crise global em 2009 a partir do mercado financeiro americano, pandemia do CORONAVÍRUS, guerra da Ucrânia, integração cultural e social inédita em escala global.

As ideias clássicas de esquerda e direita há muito estão problematizadas. Mas creio que a partir da linha aberta pelo pensador social-liberal italiano Norberto Bobbio em seu “Direita e Esquerda – Razões e significado de uma disputa política”, de 1994, é possível ressignificar os conceitos e perceber que ainda fazem sentido no mundo contemporâneo.

Em nossos dias, no Brasil e no mundo, é possível detectar a existência de três grande polos mobilizadores do pensamento e da ação política: a direita, o centro democrático e a esquerda.

Mas antes é preciso perguntar: quais são as questões decisivas que balizam a construção de divergências e convergências entre as correntes dos mais diversos matizes?

Primeiro, a questão democrática. Há amplos setores que defendem a democracia como valor universal, definitivo, inabalável e permanente. Nem todos aderem à esta convicção. Em segundo lugar, surge o desafio da sustentabilidade ambiental, que alguns apoiam, outros não. Em terceiro, o combate à miséria, à fome e a exclusão social, que é central em algumas formulações, e relegada a segundo plano por outras. Afinal, num mundo globalizado, apenas capitais e mercadorias podem livremente circular e trabalhadores não? Em quarto, a questão nacional, como conjugar identidade e interesses nacionais e a globalização do mundo? Vamos ressuscitar velhos nacionalismos retrógrados e cheios de xenofobia? As respostas variam da extrema-direita à extrema-esquerda. Surge como quinto parâmetro, o papel do Estado na economia e na sociedade. E por último, o desafio da organização social em torno da revolução tecnológica, que produz inovação, mas também desemprego estrutural e remete a polêmicas profundas de natureza moral, filosófica, econômica e política. Como erguer um modelo de desenvolvimento sustentável, justo, inovador, includente e que não agrida a essência humana?

A partir daí, colocadas as perguntas essenciais é possível avançar na discussão sobre as diferenças entre direita, esquerda e centro democrático no mundo contemporâneo. Os militantes da atual polarização insana e sectária não querem saber de perguntas, fundamentos, debate. Já têm meia dúzia de frases prontas e convicções ralas para estigmatizar seus “inimigos” e construir suas narrativas.

Grosso modo, ressalvadas as naturais peculiaridades históricas e nacionais, podemos enxergar a direita contemporânea nas experiências de Trump nos EUA, Bolsonaro no Brasil, Erdogan na Turquia, Le Pen na França, Berlusconi, Salvini e Giorgia Meloni na Itália, Orbán na Hungria, Putin na Rússia, entre outros. O compromisso com a democracia é baixo ou inexistente, cabendo às instituições e à sociedade resistir. A preocupação com a proteção ao meio ambiente é mínima e só é presente na agenda graças aos acordos internacionais e ao clamor da sociedade global em defesa da sustentabilidade, do planeta e do clima. A preocupação com a equidade social é marginal a partir de um liberalismo extremado, mas, as preocupações eleitorais os empurram para alguma política social.  Em relação à globalização têm posição refratária, reacionária e de nacionalismo radical. Quanto ao papel do estado, contraditoriamente, defendem governos fortes e autoritários, que organizem a partir de cima a economia e a sociedade, se possível transitando para experiências de poder totalitárias e ditatoriais. Quanto às novas tecnologias usam a esmo as modernas formas digitais de comunicação, mas tem postura negacionista em relação à ciência e ressalvas às suas conquistas.

Já no campo da esquerda, as especificidades diferenciadoras são maiores em seu próprio terreno. É difícil identificar numa mesma órbita teórica e política o Capitalismo de Estado da China, Maduro na Venezuela, a exótica experiência da Coréia do Norte, Gabriel Boric no Chile, a corrente democrata de Bernie Sanders, Lula e o PT – que não assumem sua natureza socialdemocrata – no Brasil, Daniel Ortega na Nicarágua, o decadente regime cubano, o PODEMOS espanhol, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista em Portugal, Jean-Luc Mélenchon na França, a Sinistra Italiana e o Die Linke na Alemanha.

São muitos matizes e diversas nuances. Alguns segmentos da esquerda mundial defendem radicalmente a democracia, mas há setores que ainda carregam os traços autoritários do marxismo-leninismo-maoísmo, inclusive exercendo o poder totalitariamente na China, na Coréia do Sul, no Vietnam, na Nicarágua, em Cuba e na Venezuela. A maior parte milita e defende firmemente a proteção ao meio ambiente, mas a China, por exemplo, é um dos polos mais resistentes aos tratados internacionais sobre emissões de gases do efeito estufa. A busca de equidade social é um dos pontos centrais na matriz de pensamento da esquerda, sendo essa uma razão seminal de sua própria existência, independente da eficácia ou não de suas experiências no poder neste ponto. A questão nacional sempre foi central no pensamento marxista. A herança das teses sobre o imperialismo leva as esquerdas a se refugiar em um nacionalismo de esquerda refratário à globalização, embora a China concentre suas energias no movimento de sua integração às grandes cadeias produtivas globais. No tema do papel do Estado, tendem sempre a configuração de um Estado Máximo, a partir das desconfianças permanentes em relação ao caráter sinalizador dos mercados e derivam, em graus variados, para advogar forte intervenção estatal. Em relação à revolução científica-tecnológica tendem a ter papel positivo de estímulo da inovação, mas um natural pé a trás com suas consequências no emprego e nas populações mais pobres.

Resta o centro democrático. Este campo difuso é de onde pode nascer a grande convergência possível e necessária, reunindo social-liberais, democratas, católicos e evangélicos conscientes e não fundamentalistas, social-democratas, socialistas democráticos, um campo que percorre o espectro político e ideológico da centro-direita à centro-esquerda.

Esse campo pode convergir na defesa radical da democracia como valor universal e permanente, sem ambiguidades, como regime que assegura freios e contrapesos, experimentação, aprendizado e autocorreção de rumos, equilíbrio entre os poderes e a garantia dos direitos fundamentais das pessoas e das minorias;   na defesa de um modelo de desenvolvimento inclusivo e sustentável, com a preservação do meio ambiente e proteção do clima; no combate frontal às desigualdades sociais a partir de fortes e eficientes políticas públicas sociais, sobretudo no campo da educação e da saúde, e de programas de transferência de renda; na defesa do Estado socialmente necessário e democraticamente regulado;  no apoio à integração nacional negociada ao mundo globalizado; e, no estímulo e regulação democrática das inovações tecnológicas.

A experiência alemã da coalizão semáforo – vermelho, da social-democracia, verde do PV e amarela dos liberais – aponta o caminho. Também Emmanuel Macron, na França, tem se esforçado para consolidar um projeto modernizador, acossado à direita por Le Pen e à esquerda por Mélenchon. O Partido Socialista Português desfez a famosa “geringonça portuguesa” nas eleições de 2022, interrompendo a aliança com o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, por divergências em torno da questão orçamentária e fiscal, e agora governa com maioria absoluta. Os esforços do PD italiano também convergem nesta direção enfrentando a extrema-direita e a extrema-esquerda italianas. Os democratas americanos, em seu sistema bipartidário, continuam resistindo às investidas do populismo autoritário de Donald Trump e são sempre uma referência para este tipo de aposta. Em países como Brasil e Reino Unido, o centro democrático já teve grande expressão, mas vem se esvaziando em anos recentes.

O mundo apresenta desafios complexos e novos. Cremos, que nem a direita nem a esquerda tradicionais, possuem hoje respostas adequadas para enfrentarmos a agenda do Século XXI. A grande convergência em torno de um polo democrático e progressista ao centro do sistema político, é que tem, a nosso juízo, a melhor condição para gerar respostas. O cenário contemporâneo é tão disruptivo e vive em veloz transformação permanente que não há teoria pronta e acabada para gerar alternativas definitivas e incontestáveis. É no exercício da democracia – esse valor universal e imprescindível – que poderemos com espírito aberto, longe de sectarismos rasos e de bolhas fundamentalistas, encontrar essas respostas. 

 *Economista, foi Deputado Federal (PSDB-MG)

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