CartaCapital
Integrantes do governo flertam com a ideia de
desvincular o salário mínimo da Previdência, um perigo para os aposentados
O governo e 17 setores empresariais chegaram a um acordo sobre a volta da contribuição patronal ao INSS baseada na folha salarial. A taxação de 20%, abolida em 2011 e substituída por uma de 1% a 4,5% incidente sobre o faturamento, será retomada aos poucos a partir de 2025, até o valor cheio ser restabelecido em 2028. Vitória do governo, embora parcial. Parcial, pois o desejo do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, era cobrar 20% já em 2024, o que geraria 12 bilhões de reais no ano. O empresariado não queria a tributação ressuscitada e se escondia atrás do Congresso. Não contava que o governo perderia a paciência diante do que um integrante da equipe econômica classificou nos bastidores de “arrogância” e apelaria ao Supremo Tribunal Federal. Foi uma liminar concedida por Cristiano Zanin em abril, a pedido do governo, que obrigou empresários e congressistas a negociar. Na quarta-feira 15, o governo requereu a Zanin a suspensão dela, enquanto os termos do acordo sejam convertidos em uma lei votada primeiro por senadores, depois por deputados.
O acordo não esgota, porém, a preocupação
governamental no tema “contribuição patronal à Previdência”. Haddad e seu time
têm planos de propor ao Congresso, em 2025, mudanças no regime de financiamento
do INSS. O ministro vê uma situação “grave”, em razão de um modelo oriundo de
distorções no mercado de trabalho. Muitas empresas optam por ter funcionários “pejotizados”,
ou seja, em vez de admiti-los com a carteira assinada, os contratam como
prestadoras de serviço, uma forma de reduzir ou zerar o recolhimento das firmas
à Previdência. No ano passado, o INSS teve um descasamento de 300 bilhões de
reais entre o que arrecadou e o que pagou de benefícios. Para Haddad, a reforma
previdenciária de 2019, no governo Bolsonaro, exigiu sacrifícios dos
trabalhadores, que agora têm de labutar mais tempo antes de se aposentar.
Aproxima-se a hora, na visão dele, de uma cota de sacrifício dos empregadores.
A ministra do Planejamento, Simone Tebet,
defende, porém, mais sacrifício dos trabalhadores: impedir que reajustes dados
ao salário mínimo sejam estendidos a aposentadorias e demais benefícios pagos
pelo INSS. A desvinculação era uma ideia pregada pelo ministro da Economia de
Bolsonaro, Paulo Guedes.
Desde o ano passado, o Brasil tem de novo uma lei de reajuste real do piso, com
uma fórmula que mescla inflação e crescimento econômico. O time de Simone e o
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, vão produzir estudos até o
fim do ano sobre o que aconteceria se houvesse a desvinculação entre esse
reajuste do mínimo e a correções de valores previdenciários. A intenção é ter
conclusões em 2025.
Em 7 de maio, um dia depois de Simone ter
exposto a ideia publicamente, alguns deputados do PT reuniram-se com o chefe da
articulação política de Lula, Alexandre Padilha, e o assunto apareceu pela voz
de Arlindo Chinaglia, de São Paulo. Os parlamentares queriam saber se o
Palácio do Planalto respaldava Simone. Não faz sentido, diz um participante da
conversa, o governo empenhar-se para ajudar financeiramente o Rio Grande do Sul
e, ao mesmo tempo, namorar medidas de austeridade. Em uma conversa reservada na
terça-feira 14, Padilha comentou que não acredita que as propostas vão
prosperar, caso cheguem à mesa presidencial. É entre os brasileiros mais velhos
que Lula tem mais popularidade: 57% das pessoas com 60 anos ou mais aprovam o
trabalho dele, conforme pesquisa Genial/Quaest de maio. Na faixa de 16 a 34
anos, a aprovação é de 47%. Na de 35 a 59 anos, de 50%.
Em 10 de maio, cinco sindicatos de
aposentados (Cobap, Sinab, Sindiapi, Sindnapi e Sintapi) emitiram um comunicado
público contra as aspirações de Simone. “Inconcebível”, diz o texto, a
salientar: pela Constituição, nenhum brasileiro deveria ganhar menos que um
salário mínimo, e o valor deste deveria ser capaz de cobrir as necessidades
básicas de um trabalhador e sua família. Segundo o Dieese, Departamento
Intersindical de Estudos e Estatísticas Socioeconômicas, para garantir o
sustento de uma família de quatro pessoas, o piso deveria ser de 6,9 mil reais.
É de 1,4 mil. O salário médio geral, de 3,1 mil, também é inferior às
necessidades básicas.
E Haddad, o que acha da eventual desvinculação entre salário mínimo e INSS? Ele recomendou recentemente no ex-Twitter a leitura de uma análise econômica que, entre outras coisas, era a favor da ideia. A essência do texto, contudo, é de que as contas públicas brasileiras têm sofrido graças a perdas de arrecadação desde Dilma Rousseff, e não por causa de gastança. Ao compartilhá-lo, Haddad quis chamar atenção para esse aspecto, disse a CartaCapital o secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Guilherme Mello. Ao Estadão, o ministro Haddad declarou não ver espaço para o plano de Simone ir adiante.
Desatrelar o salário mínimo daquilo que a
Previdência paga não é a única medida de “austeridade” na cabeça da ministra.
Em quatro entrevistas dadas em seu gabinete em 3 e 7 de maio (aos jornais Valor
e Estadão e às agências Reuters e Bloomberg), ela apresentou uma agenda ampla
de controle de gastos. Outro destaque dessa agenda é incluir o Fundeb no
cálculo da quantia mínima que, pela Constituição, o governo federal tem de
investir na educação. Fundeb é um fundo estatal de apoio ao ensino básico. O
naco federal nele será crescente até 2026. Estimativas da equipe de Simone
apontam que vai custar a Brasília cerca de 40 bilhões de reais em até quatro
anos. No limite, seria esse o corte na verba da educação, caso o fundo fosse
incorporado à conta da aplicação mínima federal. Curiosidade: Simone diz ter
sido uma “irresponsabilidade” de Paulo Guedes ter permitido a aprovação do
Fundeb no governo Bolsonaro, mas ela era senadora na época e votou a favor.
“Desvincular a Previdência do salário mínimo
e incluir o Fundeb na conta do piso da Educação são ideias muito ruins, que
contrariam o programa de governo eleito em 2022”, escreveu no ex-Twitter Gleisi
Hoffmann, a presidente do PT. “É, no mínimo, preocupante que sejam defendidas
pela ministra Simone.” A emedebista não é a única favorável a mexer no
investimento mínimo em educação. Integrante da pasta de Haddad, o secretário
do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, prega desde o ano passado a revisão dos
montantes que a Constituição estabelece como aplicação federal não em educação,
mas também em saúde (18% da arrecadação e 15% da receita corrente líquida,
respectivamente). O motivo? Estrangulamento de outras despesas federais em
decorrência do chamado marco fiscal, uma espécie de teto de gastos aprovado em
2023.
Em uma entrevista em abril do ano passado,
Ceron chegou a anunciar o envio, pelo governo ao Congresso, de uma proposta
para alterar os pisos constitucionais de saúde e educação. Em vez de indexá-los
à receita, ele sugeria usar como referência, por exemplo, a variação do PIB per
capita. Estimativas do Tesouro Nacional constantes de um relatório de março de
2024 indicam que a educação e a saúde perderiam 235 bilhões de reais entre 2025
e 2033, com a adoção do PIB per capita como parâmetro. O estudo traça outros
dois cenários. Indexar os gastos à evolução populacional esperada, e nesse caso
a perda de verba nas duas áreas chegaria a 504 bilhões de reais. Ou então ter
como referência o limite geral de gastos previsto no marco fiscal, e aí a perda
seria de 190 bilhões.
Cortar gastos públicos é agenda generalizada
do dito “mercado”. Com suas posições, Simone e Ceron engrossam o coro. A
“bancada do mercado” no governo tem ao menos mais um representante vistoso, só
que aí é herança de Bolsonaro: Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central
com mandato fixado em lei até dezembro. O economista contribuiu nos últimos
dias para agitar o “mercado” contra o governo, graças à decisão do Comitê de
Política Monetária sobre a taxa básica de juros, a Selic.
Em 8 de maio, o BC baixou a taxa em 0,25 ponto porcentual, para 10,5% ao ano. Foi uma mudança de ritmo, após seis cortes seguidos de meio ponto promovidos desde agosto de 2023. A decisão rachou o Copom. Os cinco diretores indicados por Bolsonaro defenderam a diminuição menor e os quatro indicados por Lula, a manutenção das reduções anteriores. O voto de minerva coube a Campos Neto. O dito “mercado” interpretou o placar como sinal de dureza bolsonarista com a inflação e de benevolência com ela por parte dos lulistas. A ata do encontro, divulgada na terça-feira 14, e duas manifestações públicas de indicados do atual governo mostraram, veja só, uma preocupação maior dos diretores empossados no atual governo com a mensagem que seria transmitida ao “mercado”.
Esse grupo discordava de uma alteração de
postura sem que ela tivesse sido preparada previamente, inclusive porque o
cenário econômico não havia sofrido modificação substancial desde a reunião de
março do Copom, último corte de meio ponto na Selic. Nessa circunstância, uma
nova postura afetaria o chamado forward guidance, aquele farol representado
pelo BC.
O mais próximo de um ensaio de nova postura
havia sido um discurso de Campos Neto em 17 de abril, nos Estados Unidos. Mas
sem discussão no Copom, conforme disse na terça-feira 14 à Bloomberg o diretor
de Assuntos Internacionais, Paulo Picchetti. No dia seguinte, Gabriel Galípolo,
diretor de Política Monetária e provável substituto de Campos Neto a partir de
2025, afirmou nos EUA que era preciso ter “coerência” com “toda comunicação que
eu vinha fazendo”, em nome da “credibilidade”, daí o voto no corte de meio
ponto. Em um evento interno do BC em Brasília, Campos Neto declarou que a
posição da maioria do Copom tinha sido “técnica” e baseada em “relevantes”
alterações do cenário pós-março.
Juro maior: o “mercado” agradece.
*Publicado na edição n° 1311 de CartaCapital,
em 22 de maio de 2024.
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