segunda-feira, 20 de maio de 2024

André Barrocal - O “mercado” agradece

CartaCapital

Integrantes do governo flertam com a ideia de desvincular o salário mínimo da Previdência, um perigo para os aposentados

O governo e 17 setores empresariais chegaram a um acordo sobre a volta da contribuição patronal ao INSS baseada na folha salarial. A taxação de 20%, abolida em 2011 e substituída por uma de 1% a 4,5% incidente sobre o faturamento, será retomada aos poucos a partir de 2025, até o valor cheio ser restabelecido em 2028. Vitória do governo, embora parcial. Parcial, pois o desejo do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, era cobrar 20% já em 2024, o que geraria 12 bilhões de reais no ano. O empresariado não queria a tributação ressuscitada e se escondia atrás do Congresso. Não contava que o governo perderia a paciência diante do que um integrante da equipe econômica classificou nos bastidores de “arrogância” e apelaria ao Supremo Tribunal Federal. Foi uma liminar concedida por Cristiano ­Zanin em abril, a pedido do governo, que obrigou empresários e congressistas a negociar. Na quarta-feira 15, o governo requereu a Zanin a suspensão dela, enquanto os termos do acordo sejam convertidos em uma lei votada primeiro por senadores, depois por deputados.

O acordo não esgota, porém, a preocupação governamental no tema “contribuição patronal à Previdência”. ­Haddad e seu time têm planos de propor ao Congresso, em 2025, mudanças no regime de financiamento do INSS. O ministro vê uma situação “grave”, em razão de um modelo oriundo de distorções no mercado de trabalho. Muitas empresas optam por ter funcionários “pejotizados”, ou seja, em vez de admiti-los com a carteira assinada, os contratam como prestadoras de serviço, uma forma de reduzir ou zerar o recolhimento das firmas à Previdência. No ano passado, o INSS teve um descasamento de 300 bilhões de reais entre o que arrecadou e o que pagou de benefícios. Para Haddad, a reforma previdenciária de 2019, no governo Bolsonaro, exigiu sacrifícios dos trabalhadores, que agora têm de labutar mais tempo antes de se aposentar. Aproxima-se a hora, na visão dele, de uma cota de sacrifício dos empregadores.

A ministra do Planejamento, Simone Tebet, defende, porém, mais sacrifício dos trabalhadores: impedir que rea­justes dados ao salário mínimo sejam estendidos a aposentadorias e demais benefícios pagos pelo INSS. A desvinculação era uma ideia pregada pelo ministro da Economia de Bolsonaro, ­Paulo Guedes. Desde o ano passado, o Brasil tem de novo uma lei de reajuste real do piso, com uma fórmula que mescla inflação e crescimento econômico. O time de Simone e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, vão produzir estudos até o fim do ano sobre o que aconteceria se houvesse a desvinculação entre esse reajuste do mínimo e a correções de valores previdenciários. A intenção é ter conclusões em 2025.

Em 7 de maio, um dia depois de Simone ter exposto a ideia publicamente, alguns deputados do PT reuniram-se com o chefe da articulação política de Lula, Alexandre Padilha, e o assunto apareceu pela voz de Arlindo ­Chinaglia, de São Paulo. Os parlamentares queriam saber se o Palácio do Planalto respaldava Simone. Não faz sentido, diz um participante da conversa, o governo empenhar-se para ajudar financeiramente o Rio Grande do Sul e, ao mesmo tempo, namorar medidas de austeridade. Em uma conversa reservada na terça-feira 14, Padilha comentou que não acredita que as propostas vão prosperar, caso cheguem à mesa presidencial. É entre os brasileiros mais velhos que Lula tem mais popularidade: 57% das pessoas com 60 anos ou mais aprovam o trabalho dele, conforme pesquisa Genial/Quaest de maio. Na faixa de 16 a 34 anos, a aprovação é de 47%. Na de 35 a 59 anos, de 50%.

Em 10 de maio, cinco sindicatos de aposentados (Cobap, Sinab, Sindiapi, Sindnapi e Sintapi) emitiram um comunicado público contra as aspirações de Simone. “Inconcebível”, diz o texto, a salientar: pela Constituição, nenhum brasileiro deveria ganhar menos que um salário mínimo, e o valor deste deveria ser capaz de cobrir as necessidades básicas de um trabalhador e sua família. Segundo o Dieese, Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas Socioeconômicas, para garantir o sustento de uma família de quatro pessoas, o piso deveria ser de 6,9 mil reais. É de 1,4 mil. O salário médio geral, de 3,1 mil, também é inferior às necessidades básicas.

E Haddad, o que acha da eventual desvinculação entre salário mínimo e INSS? Ele recomendou recentemente no ex-Twitter a leitura de uma análise econômica que, entre outras coisas, era a favor da ideia. A essência do texto, contudo, é de que as contas públicas brasileiras têm sofrido graças a perdas de arrecadação desde Dilma Rousseff, e não por causa de gastança. Ao compartilhá-lo, ­Haddad quis chamar atenção para esse aspecto, disse a CartaCapital o secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Guilherme Mello. Ao ­Estadão, o ministro Haddad declarou não ver espaço para o plano de Simone ir adiante.

Desatrelar o salário mínimo daquilo que a Previdência paga não é a única medida de “austeridade” na cabeça da ministra. Em quatro entrevistas dadas em seu gabinete em 3 e 7 de maio (aos jornais Valor e Estadão e às agências ­Reuters e Bloomberg), ela apresentou uma agenda ampla de controle de gastos. Outro destaque dessa agenda é incluir o Fundeb no cálculo da quantia mínima que, pela Constituição, o governo federal tem de investir na educação. Fundeb é um fundo estatal de apoio ao ensino básico. O naco federal nele será crescente até 2026. Estimativas da equipe de Simone apontam que vai custar a Brasília cerca de 40 bilhões de reais em até quatro anos. No limite, seria esse o corte na verba da educação, caso o fundo fosse incorporado à conta da aplicação mínima federal. Curiosidade: Simone diz ter sido uma “irresponsabilidade” de ­Paulo Guedes ter permitido a aprovação do Fundeb no governo Bolsonaro, mas ela era senadora na época e votou a favor.

“Desvincular a Previdência do salário mínimo e incluir o Fundeb na conta do piso da Educação são ideias muito ruins, que contrariam o programa de governo eleito em 2022”, escreveu no ex-Twitter Gleisi Hoffmann, a presidente do PT. “É, no mínimo, preocupante que sejam defendidas pela ministra ­Simone.” A emedebista não é a única favorável a mexer no investimento mínimo em educação. Integrante da pasta de ­Haddad, o secretário do Tesouro Nacional, Rogério ­Ceron, prega desde o ano passado a revisão dos montantes que a Constituição estabelece como aplicação federal não em educação, mas também em saúde (18% da arrecadação e 15% da receita corrente líquida, respectivamente). O motivo? Estrangulamento de outras despesas federais em decorrência do chamado marco fiscal, uma espécie de teto de gastos aprovado em 2023.

Em uma entrevista em abril do ano passado, Ceron chegou a anunciar o envio, pelo governo ao Congresso, de uma proposta para alterar os pisos constitucionais de saúde e educação. Em vez de indexá-los à receita, ele sugeria usar como referência, por exemplo, a variação do PIB per capita. Estimativas do Tesouro Nacional constantes de um relatório de março de 2024 indicam que a educação e a saúde perderiam 235 bilhões de reais entre 2025 e 2033, com a adoção do PIB per capita como parâmetro. O estudo traça outros dois cenários. Indexar os gastos à evolução populacional esperada, e nesse caso a perda de verba nas ­duas áreas chegaria a 504 bilhões de reais. Ou então ter como referência o limite geral de gastos previsto no marco fiscal, e aí a perda seria de 190 bilhões.

Cortar gastos públicos é agenda generalizada do dito “mercado”. Com suas posições, Simone e Ceron engrossam o coro. A “bancada do mercado” no governo tem ao menos mais um representante vistoso, só que aí é herança de Bolsonaro: Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central com mandato fixado em lei até dezembro. O economista contribuiu nos últimos dias para agitar o “mercado” contra o governo, graças à decisão do Comitê de Política Monetária sobre a taxa básica de juros, a Selic.

Em 8 de maio, o BC baixou a taxa em 0,25 ponto porcentual, para 10,5% ao ano. Foi uma mudança de ritmo, após seis cortes seguidos de meio ponto promovidos desde agosto de 2023. A decisão rachou o Copom. Os cinco diretores indicados por Bolsonaro defenderam a diminuição menor e os quatro indicados por Lula, a manutenção das reduções anteriores. O voto de minerva coube a Campos Neto. O dito “mercado” interpretou o placar como sinal de dureza bolsonarista com a inflação e de benevolência com ela por parte dos lulistas. A ata do encontro, divulgada na terça-feira 14, e duas manifestações públicas de indicados do ­atual governo mostraram, veja só, uma preocupação maior dos diretores empossados no atual governo com a mensagem que seria transmitida ao “mercado”.

Esse grupo discordava de uma alteração de postura sem que ela tivesse sido preparada previamente, inclusive porque o cenário econômico não havia sofrido modificação substancial desde a reunião de março do Copom, último corte de meio ponto na Selic. Nessa circunstância, uma nova postura afetaria o chamado forward guidance, aquele farol representado pelo BC.

O mais próximo de um ensaio de nova postura havia sido um discurso de Campos Neto em 17 de abril, nos Estados Unidos. Mas sem discussão no Copom, conforme disse na terça-feira 14 à Bloomberg o diretor de Assuntos Internacionais, Paulo Picchetti. No dia seguinte, Gabriel Galípolo, diretor de Política Monetária e provável substituto de Campos Neto a partir de 2025, afirmou nos EUA que era preciso ter “coerência” com “toda comunicação que eu vinha fazendo”, em nome da “credibilidade”, daí o voto no corte de meio ponto. Em um evento interno do BC em Brasília, Campos Neto declarou que a posição da maioria do Copom tinha sido “técnica” e baseada em “relevantes” alterações do cenário pós-março.

Juro maior: o “mercado” agradece. 

*Publicado na edição n° 1311 de CartaCapital, em 22 de maio de 2024.

 

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