O Globo
É desolador ver a quantidade de absurdos
despejados nas redes sociais a respeito da tragédia no Rio Grande do Sul
As imagens com ruas, bairros e cidades
inteiras alagados, carros e casas submersos serão difíceis de esquecer para
quem está longe do Rio Grande do Sul. Não é possível mensurar o dano de quem
vivencia tudo isso.
Com 2 ou 3 anos, vi as águas da chuva invadirem minha casa em Madureira, no subúrbio carioca. Mesmo com tão pouca idade, guardei duas memórias até hoje, aos 37. A primeira foi minha mãe me pegando no colo, tentando sair de casa e gritando porque algum bicho tinha passado por ela. Lembro o grito de medo com a possibilidade de ser um rato ou uma cobra. A segunda é o que as águas deixaram para trás. O quarto tinha chão de tacos, e me chamou muito a atenção que todos eles tinham sido levados e, no lugar, ficado uma imensidão de pregos, impossibilitando uma família de dormir no cômodo. Naquele mesmo dia, a bola com que eu brincava escapou e foi parar lá. Furou assim que tocou nos pregos.
Compartilho essa história para termos a
dimensão do que acontece no Sul do país, infinitamente mais grave. Muita gente
entende isso e tem se esforçado dia e noite para ajudar as pessoas que tanto
precisam de socorro e acolhimento. No entanto é extremamente desolador ver a
quantidade de absurdos despejados nas redes sociais a respeito da fatalidade.
No ano passado, compartilhei a perplexidade e
revolta que sentia diante de tantos desastres ambientais no Brasil ao longo dos
anos e afirmei que não é uma
chuva que mata, e sim o poder público. Mas é preciso reconhecer
também nossa parcela de culpa. O horror que temos visto nos últimos dias tem
sido usado como combustível para proselitismo político e ataques que lembram o
tribalismo.
Um estudo de
psicologia da Universidade de Cambridge analisou 2,7 milhões de publicações
sobre política no Facebook e
no X (ex-Twitter).
Concluiu que aquelas criadas ofendendo a visão ideológica oposta recebem o
dobro do compartilhamento dos posts defendendo o próprio espectro político. “De
todos aqueles que medimos, atacar a oposição política foi o indicador mais
poderoso de que uma publicação se tornaria viral”, disse Steve Rathje, primeiro
autor do estudo.
Outra pesquisa interessante, realizada pela More in Common,
aponta que apenas 14% da sociedade está concentrada nos extremos da política
(8% à esquerda e 6% à direita). Ficam fora dos extremos, portanto, 86%. Desse
grupo, 19% tende a compartilhar conteúdo político nas redes sociais — enquanto
o percentual sobe para 70% e 56% nos dois extremos, de esquerda e direita,
respectivamente.
Trata-se, portanto, de uma minoria
barulhenta, mas presente entre formadores de opinião, efetivamente atrasando o
país e atrapalhando a sociedade. Vemos espantalhos criados ser combatidos como
os moinhos de vento de Dom Quixote, e isso é desesperador, porque não
aprendemos na pandemia e observamos os mesmos erros de novo.
Por quantas tragédias precisaremos passar e
quantas vidas teremos de perder para parar de ver nosso próprio umbigo e olhar
para o lado e realmente enxergar o outro?
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