segunda-feira, 20 de maio de 2024

Irapuã Santana – Quantas vidas para aprender?

O Globo

É desolador ver a quantidade de absurdos despejados nas redes sociais a respeito da tragédia no Rio Grande do Sul

As imagens com ruas, bairros e cidades inteiras alagados, carros e casas submersos serão difíceis de esquecer para quem está longe do Rio Grande do Sul. Não é possível mensurar o dano de quem vivencia tudo isso.

Com 2 ou 3 anos, vi as águas da chuva invadirem minha casa em Madureira, no subúrbio carioca. Mesmo com tão pouca idade, guardei duas memórias até hoje, aos 37. A primeira foi minha mãe me pegando no colo, tentando sair de casa e gritando porque algum bicho tinha passado por ela. Lembro o grito de medo com a possibilidade de ser um rato ou uma cobra. A segunda é o que as águas deixaram para trás. O quarto tinha chão de tacos, e me chamou muito a atenção que todos eles tinham sido levados e, no lugar, ficado uma imensidão de pregos, impossibilitando uma família de dormir no cômodo. Naquele mesmo dia, a bola com que eu brincava escapou e foi parar lá. Furou assim que tocou nos pregos.

Compartilho essa história para termos a dimensão do que acontece no Sul do país, infinitamente mais grave. Muita gente entende isso e tem se esforçado dia e noite para ajudar as pessoas que tanto precisam de socorro e acolhimento. No entanto é extremamente desolador ver a quantidade de absurdos despejados nas redes sociais a respeito da fatalidade.

No ano passado, compartilhei a perplexidade e revolta que sentia diante de tantos desastres ambientais no Brasil ao longo dos anos e afirmei que não é uma chuva que mata, e sim o poder público. Mas é preciso reconhecer também nossa parcela de culpa. O horror que temos visto nos últimos dias tem sido usado como combustível para proselitismo político e ataques que lembram o tribalismo.

Um estudo de psicologia da Universidade de Cambridge analisou 2,7 milhões de publicações sobre política no Facebook e no X (ex-Twitter). Concluiu que aquelas criadas ofendendo a visão ideológica oposta recebem o dobro do compartilhamento dos posts defendendo o próprio espectro político. “De todos aqueles que medimos, atacar a oposição política foi o indicador mais poderoso de que uma publicação se tornaria viral”, disse Steve Rathje, primeiro autor do estudo.

Outra pesquisa interessante, realizada pela More in Common, aponta que apenas 14% da sociedade está concentrada nos extremos da política (8% à esquerda e 6% à direita). Ficam fora dos extremos, portanto, 86%. Desse grupo, 19% tende a compartilhar conteúdo político nas redes sociais — enquanto o percentual sobe para 70% e 56% nos dois extremos, de esquerda e direita, respectivamente.

Trata-se, portanto, de uma minoria barulhenta, mas presente entre formadores de opinião, efetivamente atrasando o país e atrapalhando a sociedade. Vemos espantalhos criados ser combatidos como os moinhos de vento de Dom Quixote, e isso é desesperador, porque não aprendemos na pandemia e observamos os mesmos erros de novo.

Por quantas tragédias precisaremos passar e quantas vidas teremos de perder para parar de ver nosso próprio umbigo e olhar para o lado e realmente enxergar o outro?


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