O Globo
Verdade não tem muito valor no cotidiano
brasileiro
O que veio primeiro: o político mentiroso ou
o eleitor que inventa mentiras? Melhor seria perguntar: por que deixamos de
acreditar na verdade?
Não é correto dizer que Bolsonaro, na extrema
direita, tampouco Lula,
na esquerda, sejam os primeiros a se valer de inverdades como instrumento
político. No Brasil, o recurso à traquinagem tem tradição, régua e compasso.
Não indo muito longe, podemos ficar na eleição de Artur Bernardes no problemático 1922. Ano do centenário da Independência, da Semana de Arte Moderna e da revolta dos 18 do Forte de Copacabana, quando alguns tenentes quiseram derrubar o governo à bala (a coisa vem de longe). No meio da campanha, surgiram várias cartas creditadas a Bernardes, recheadas de ataques ao marechal Hermes da Fonseca, chamado de “sargentão sem compostura”. Eram apócrifas, inventadas pelos partidários de Nilo Peçanha, que seria derrotado nas urnas. Mesmo desmascaradas, as mentiras serviram para azedar a relação de Bernardes, obrigado a governar sob estado de sítio, com os militares.
(Vale lembrar que também Bernardes era um
tipo desarrazoado. Entre outras bobajadas, mandou prender o grande Sinhô, autor
da marchinha carnavalesca “Fala baixo”, cujos versos denunciavam a censura do
governo e a maldosa alcunha do presidente: “Vem cá, Rolinha, vem cá”. Não se
sabe o motivo, mas Bernardes não gostava de ser chamado de rolinha.)
É possível que os políticos tenham começado a
mentir porque nem sempre os eleitores gostassem da verdade dita na cara. Um
exemplo eu presenciei. Em 1985, no debate pela prefeitura de São Paulo, o
jornalista Boris Casoy perguntou a Fernando Henrique Cardoso se ele acreditava
em Deus. O candidato se enrolou na resposta, não disse nem sim nem não. Os
eleitores não gostaram da disfarçada sinceridade e não elegeram um notório
ateu, preferindo Jânio Quadros.
No mesmo debate — num exemplo de como a política mudou —, fizeram um quiz
com Eduardo
Suplicy, candidato do PT: quanto custa um pãozinho francês? Ele
mandou lá um valor bem alto. Comentaram: “Isso é preço de croissant, Eduardo!”.
A maioria dos eleitores parece não gostar da
verdade, mesmo porque ela não tem muito valor no cotidiano brasileiro. O
filósofo Tim Maia resumiu
a peleja e alma da nossa gente:
— Eu não bebo, eu não cheiro, mas minto um
pouco às vezes.
Aí chegamos a outra equação, assim resumida:
o político mente para agradar ao público ou o eleitor não dá voto a quem se
mostra cru e sincero? Difícil questão, porque em muitos momentos sabemos que
estamos sendo enganados.
Vamos mais perto na História. Na eleição de
2022, Lula da Silva se apoiou numa aliança da centro-direita à esquerda para
derrotar Bolsonaro. Disse que faria um governo de reconstrução e harmonia. Tá
bom. Tebet e outros tantos brasileiros sabiam que daquele mato não sairia nada.
De fato, só saiu nota oficial da Janja.
A razão do faz de conta — expulsar Bolsonaro do poder — parecia ser um
atenuante tolerável para engolir a mentira eleitoral. Então o jogo político se
resume a estratégia e, portanto, o blefe é recurso válido. Ou a mentira, em
alguns casos. Como quando se elogia Nicolás
Maduro por representar uma invejável democracia sul-americana.
(O improviso de Lula provavelmente envergonhou até a Gleisi.)
Parte do eleitorado petista sabe que a Venezuela vive
sob um regime autoritário e sanguinário, assim como os comunistas brasileiros
tinham informações dos crimes cometidos por Stálin. Em nome da causa, se
escondem os fatos, e são criadas inverdades. Quantas mortes teriam sido
evitadas se a esquerda mundial houvesse protestado contra Stálin? Milhões, por
certo. Ou quantos venezuelanos deixariam de ser presos políticos se Lula
ousasse dizer o que o mundo denuncia? Milhares, com certeza.
Talvez seja o caso de o eleitor se olhar no
espelho e saber que sua postura legitima a mentira do governante. No caso,
talvez o político seja mesmo apenas um servidor público, aquele que cumpre
ordens. Um pau-mandado? Não dá para dizer que é um pobre de um coitado agindo
contra seus princípios, dando a vida por uma causa perdida e violentando-se em
nome do bem comum — bem, isso já seria demais. Mas, pensando melhor, não se
pode esquecer que a maioria dos bolsonaristas desmente que o 8 de Janeiro tenha
sido uma malsucedida tentativa de golpe.
Se no Brasil até o passado é incerto, como se
diz por aí, é porque o país do futuro talvez seja de fato outra mentira.
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