sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Stefan Gerlach* - Limites da independência dos BCs

Valor Econômico

A principal preocupação é com o crescimento dos balanços dos BCs, por causa dos vários anos de relaxamento quantitativo, que hoje têm levado a grandes perdas

Os bancos centrais não são principados soberanos e seus dirigentes não são príncipes soberanos. Embora a independência dos bancos centrais tenha sido essencial para a elaboração de políticas eficazes nas últimas décadas - ao dar às autoridades monetárias a cobertura política para que adotem medidas necessárias, mas possivelmente dolorosas, quando as condições assim exijam -, é quase certo que os limites desse princípio se tornarão mais claros nos próximos anos.

O motivo não é que erros catastróficos de política monetária tenham acontecido, ou que os governos queiram assumir diretamente a gestão da política monetária. De forma geral, os bancos centrais têm feito um bom trabalho e os governos sentem-se contentes em deixar que o façam.

É claro que o Federal Reserve (Fed) dos Estados Unidos e bancos centrais de outros países poderiam ter começado mais cedo uma intervenção para parar ou amenizar a disparada recente da inflação, mas a maioria dos observadores mais sensatos avalia que esse episódio era inevitável. Ele foi causado por uma série de choques excepcionalmente abrangentes e completamente inesperados para a economia mundial - em particular os da covid-19 e da invasão da Ucrânia pela Rússia. Os dirigentes de bancos centrais podem ser perdoados por não terem previsto a primeira pandemia mundial em um século e a primeira grande guerra na Europa em 80 anos.

Os governos têm o poder de nomear a autoridade monetária, e parece lógico que não optarão por autoridades que tendam a ignorar os interesses e prioridades do governo. É por isso que dirigentes dos BCs de muitos países são ex-autoridades do Tesouro com frequência

Então, por que é que o princípio da independência dos bancos centrais está mais vulnerável? A principal preocupação é com o crescimento dos balanços dos bancos centrais - por causa dos vários anos de relaxamento quantitativo - que hoje têm levado a grandes perdas. Embora os governos considerem a independência dos bancos centrais como algo bom, em princípio, perdas que terão efeitos de primeira ordem nas finanças públicas são outra história. E isto é especialmente verdadeiro se as perdas se materializam em um momento em que a demanda por gastos públicos para a adaptação às mudanças climáticas e sua mitigação, para a competitividade estratégica e para a área da defesa aumentou de maneira massiva.

A independência dos bancos centrais é vista com frequência como uma panaceia para o tipo de inflação alta e persistente que caracterizou os anos 1970 e o início dos anos 1980. Para muitos, ela parece um almoço grátis: desinflação e estabilidade de preços a longo prazo sem quaisquer efeitos adversos sobre o crescimento e o desemprego. Mas é quase certo que os defensores da independência dos bancos centrais superestimam seu papel como garantidor de uma inflação baixa.

Consideremos um cenário que contradiz essa ideia: a Autoridade Monetária de Cingapura tem conseguido uma taxa de inflação média de quase 2% desde a introdução da estrutura de sua política monetária, no início dos anos 1980. Poucos bancos centrais conseguem igualar esse histórico excepcional. E, no entanto, quatro ministros do governo de Cingapura integram o conselho da Autoridade Monetária, e não há muitas dúvidas de que o governo pode controlar a política monetária, se assim desejar. Cingapura conseguiu uma inflação baixa e estável de maneira consistente sem um regime robusto de independência do banco central.

O que mais importa para a estabilidade dos preços é a capacidade dos bancos centrais de definirem as taxas de juro e outras alavancas de política monetária conforme lhes pareça apropriado. Um apoio político firme é essencial para o objetivo de manter a inflação baixa; mas a independência jurídica total não parece ser uma condição necessária para conseguir isso.

Além disso, quando os economistas mensuram a independência dos bancos centrais, o próprio Fed tem uma pontuação bastante baixa - pior do que a dos bancos centrais de muitos países latino-americanos mais suscetíveis à inflação -, mas em geral ele é visto como um banco que faz um bom trabalho para garantir a estabilidade dos preços. Mais uma vez, a questão chave é se existe um consenso político contra interferir na atividade do banco central de buscar uma inflação baixa.

Os bancos centrais são rápidos em lembrar que seu objetivo é garantir preços estáveis, e não gerar receitas para o governo. Embora esta seja uma afirmação verdadeira, ela é um pouco ingênua. Quando a independência dos bancos centrais foi adotada em todo o mundo, há um quarto de século, ninguém previa que os lucros e perdas dos bancos centrais teriam muita importância para as finanças públicas. Mas grandes perdas importam sim, e com a mudança da situação, os políticos podem começar a acreditar que o consenso em torno da independência do banco central e a forma que ela assume também precisam mudar.

Os governos têm o poder de nomear os responsáveis pela política monetária, portanto parece lógico que não escolherão autoridades que tendam a ignorar os interesses e prioridades do governo. É por essa razão que dirigentes dos bancos centrais de muitos países frequentemente vêm das fileiras de ex-autoridades do Tesouro.

Os bancos centrais fariam bem em serem mais sensíveis às consequências que suas ações podem ter para as finanças públicas. Em última análise, essa pode ser a única forma de proteger sua liberdade de alinhar a política monetária com seu mandato de garantir a estabilidade de preços. (Tradução de Lilian Carmona)

*Stefan Gerlach economista-chefe do EFG Bank em Zurique, foi diretor executivo da Autoridade Monetária de Hong Kong e vice-governador do Banco Central da Irlanda. 

 

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