Valor Econômico
Todos ganhariam se houvesse processos de
transição governamental reflexivos e voltados a produzir políticas de longo
prazo baseadas em dados e evidências
Uma das maiores conquistas do povo brasileiro
foi conseguir fazer eleições regulares, livres e competitivas em todos os
níveis de governo nas últimas décadas. Quando começamos a eleger presidentes de
forma livre depois de 20 anos de regime autoritário, a alegria foi inenarrável.
Mas é sempre bom lembrar que a cidadania política é um processo de aprendizado
que se inicia no plano local, onde o poder está mais próximo dos cidadãos. O
ato do voto é fundamental, no entanto, a qualidade de uma democracia depende da
capacidade de os eleitores aprenderem com as políticas públicas, avaliando o
que deve continuar e o que deve mudar.
Neste ano serão eleitos vereadores e
prefeitos em 5.569 municípios. É um pleito gigantesco e complexo, com poucos
paralelos no mundo democrático. A complexidade dessa engenharia política advém
principalmente do fato de que as municipalidades brasileiras são muito
diferentes entre si. Essa constatação poderia levar à ilusão de que é possível
inventar novas soluções em cada localidade do país, e que cada eleição deve ser
um novo recomeço.
O debate público deveria realçar que a possibilidade de mudança é uma garantia democrática presente em toda eleição, um elemento positivo que evita os males da perpetuação no poder, como se vê hoje tristemente na Venezuela. Só que se cada novo governo local tentar fazer algo completamente diferente, quiçá inédito, há mais chances de piorar a qualidade das políticas públicas do que encontrar caminhos melhores para as políticas públicas. Quando não se aprende com o que foi feito no passado, definindo o que deve ser continuado ou modificado, o resultado mais provável é ficar sem uma bússola segura para produzir melhores respostas aos cidadãos.
O problema é que uma das principais
características dos municípios brasileiros é a descontinuidade administrativa.
Programas governamentais geralmente são substituídos a cada alternância do
poder e dificilmente uma política pública ganha o status de política de Estado,
e não apenas do governo de plantão. Na verdade, mesmo com governantes reeleitos
ou até num mesmo mandato, há descontinuidades importantes, com setores tendo
até um secretário para cada ano do quadriênio governamental, como acontece
regularmente, por exemplo, na educação.
O que leva a esse padrão de eterno recomeço a
cada eleição? Quatro fatores explicam a força desse padrão. O primeiro são as
baixas capacidades estatais da maioria dos governos municipais. Embora tenha
havido um avanço importante na profissionalização dos funcionários públicos
vinculados à implementação e execução dos serviços públicos, como médicos e
professores - os chamados burocratas de nível de rua -, não houve o mesmo
sentido positivo no que diz respeito aos gestores das secretarias e
equipamentos públicos. Há ainda muita descontinuidade entre aqueles que
formulam ou assessoram a formulação, bem como entre burocratas intermediários,
que fazem a engrenagem das políticas se mover cotidianamente.
A fragilidade em termos de capacidades
estatais deveria gerar um comportamento de preservação maior da continuidade
das políticas e entre mandatos, pois isso poderia favorecer um aprendizado ao
longo dos governos que permitiria a acumulação de saberes e práticas que
fortaleceria, ao final, a capacidade de gestão. Porém, entra aqui um segundo
fator de descontinuidade: na maior parte das vezes, o sistema político é mais
movido pela mudança do que pela preservação da memória administrativa
É muito comum na passagem de uma gestão a
outra o desaparecimento de documentos ou mesmo dos próprios computadores, além
da demissão logo de cara de quem era responsável pelos programas anteriores de
uma área. Além disso, a lógica da política local em grande parte do país é
fortemente ligada ao personalismo, de modo que os eleitos procuram estabelecer
uma marca de governo trocando pessoas num nível muito alto de mudança
administrativa, para, como se diz popularmente, “colocar os seus homens de
confiança”.
Ressalte-se que há também casos locais que
conseguem manter um aprendizado contínuo de políticas públicas, preservando o
que de melhor foi feito na gestão anterior e melhorando gradativamente as ações
governamentais. Quando se cita a experiência exitosa de Sobral na educação,
poucas vezes se diz que o seu sucesso tem uma forte relação com a preservação
da memória administrativa, e mesmo quando pessoas nos postos de comando são
trocadas, tenta-se aproveitar quem já participava, de algum modo, da política
educacional.
A descontinuidade administrativa local é
ainda influenciada por padrões ainda insatisfatórios de cooperação
intermunicipal de longo prazo. Este terceiro fator explicativo é fundamental
porque uma forma de se construir continuidades de políticas municipais em maior
escala é pela via do aprendizado entre os pares, levando à disseminação de boas
práticas que depois podem ser customizadas a cada contexto. Neste intercâmbio
cooperativo, vale igualmente incentivar o maior diálogo entre políticos,
gestores e burocratas de todos os níveis gerenciais. O avanço de municípios tão
desiguais como os brasileiros depende de mecanismos aceleradores e
compartilhados de aprimoramento de políticas públicas, uma vez que a maioria
não conseguirá sair de sua situação “puxando os próprios cabelos”, para usar a
metáfora germânica.
Para ser justo na argumentação, é inegável
que já houve nos últimos anos muitos avanços em termos de associativismo
intermunicipal. Associações municipalistas se fortaleceram e têm maior
espraiamento pelo país. Cresceu também a cooperação intermunicipal em algumas
políticas públicas e mesmo de forma multissetorial. Igualmente importante são
as ações federais e, em menor medida, estaduais que criam padrões que podem ser
difundidos entre as municipalidades e gerar inclusive diálogo e aprendizado
entre elas. No entanto, o fenômeno da fragmentação local e da baixa
disseminação de políticas entre os governos municipais é, por ora, mais forte
do que a articulação entre os governos locais. A prevalência desse padrão
dificulta sair da armadilha da descontinuidade administrativa que tanto
atrapalha os municípios no Brasil.
Obviamente que a argumentação em prol de
maior aprendizado incremental e menos mudanças abruptas e desnecessárias não
quer dizer que as eleições regulares e a possibilidade de alternância não devam
ser sempre comemoradas. Avaliar a cada quatro anos os representantes e
governantes locais, premiando com reeleição ou punindo com a eleição de outros
competidores, é a arma política do alarme de incêndio que pode ter um impacto
importantíssimo para o aperfeiçoamento das políticas públicas.
Mesmo levando em conta esse potencial
positivo da política sobre a gestão, é necessário que os governos preparem os
processos de transição de um período governamental a outro, até quando há
reeleição, pois é comum haver modificações substanciais em mandatos diferentes
de um prefeito reeleito. E aqui entra o quarto e último fator que favorece a
descontinuidade administrativa: não há incentivos institucionais e nem modelos
administrativos disseminados que levem em conta o tema da transição
político-administrativa democrática entre os governos.
De fato, já há legislações que limitam o
comportamento de pirata saqueador que havia no passado, como a Lei de
Responsabilidade Fiscal. Mas ainda não há uma obrigação política ou cultural de
se produzir memória administrativa e, como instrumento ainda mais robusto,
relatórios de acompanhamento e reflexão sobre a trajetória das políticas
públicas. Embora tenha havido avanços nos instrumentos de planejamento
governamental mais amplo, como o Plano Plurianual ou planos de metas em algumas
cidades, quando há um corte intertemporal devido às eleições, perde-se muito em
aprendizado na gestão pública local.
Todos ganhariam se houvesse processos de
transição governamental reflexivos e voltados a produzir políticas de longo
prazo baseadas em dados e evidências, o que permitiria melhorias contínuas,
incrementais ou se necessário disruptivas. Eleitores estariam mais bem
informados para realizar seu voto. Políticos tomariam decisões mais sólidas que
evitariam a demagogia do discurso antipolítica. Seria consolidado um modelo
burocrático em que os profissionais seriam mais valorizados e avaliados
conforme suas capacidades e desempenho. E, por fim, os municípios, tão frágeis
e desiguais em sua maioria, criariam condições para exercerem melhor suas
funções.
Para quem quiser conhecer uma boa análise
sobre como reduzir os malefícios da descontinuidade administrativa por meios de
estratégias locais e intermunicipais, inclusive com lições sobre como fazer
boas transições governamentais e disseminações de boas práticas, recomendo o
livro “Transição de gestão na Secretaria de Educação”, escrito por Carlos
Eduardo Sanches, Edilberto Lima e Maíra Weber, recém-lançado pelo Instituto
Positivo e Instituto Rui Barbosa. Fiz o prefácio da obra, no qual aponto como
seriam mais impactantes as eleições municipais se os governos não recomeçassem
completamente a cada novo mandato. Afinal, a força maior da democracia está na
combinação de escrutínio popular constante (livre e justo), voto bem-informado
e sistema político-administrativo capaz de aprender continuamente com as
políticas públicas.
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