Isenções e subsídios tributários devem ser alvo de revisão
O Globo
Orçamento prevê R$ 544 bilhões em renúncias a
impostos sobre atividades variadas, sem controle de eficácia
Dos 2,2 milhões de contribuintes que, na
declaração de Imposto de Renda de 2023, se identificaram como sócios de
empresas regidas pelo Simples Nacional, uma minoria de 38,4 mil recebeu R$ 46
bilhões em lucros e dividendos isentos de tributação — média de R$ 1,5 milhão
por contribuinte —, revelou um estudo do instituto Samambaia.org com base em
dados da Receita Federal. Criado para reduzir o peso da carga tributária e
facilitar a vida de empresas de menor porte, o Simples se transformou num
atalho para a população de alta renda pagar pouco ou nenhum imposto. Cerca de
10% dos sócios de empresas do regime ganharam mais que os R$ 240 mil imaginados
pelo governo como patamar para a isenção.
Esta é apenas uma das inúmeras distorções na distribuição de isenções tributárias no país. De acordo com o Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) de 2025, a União deixará de arrecadar R$ 543,7 bilhões com benefícios tributários a pessoas jurídicas e físicas, ou R$ 20 bilhões a mais que neste ano. O total equivale a 4,4% do PIB projetado na PLOA ou a 19,7% da arrecadação federal. Se incluídos subsídios creditícios e financeiros, a conta alcança 6% do PIB. Para efeito de comparação, faltam R$ 166 bilhões para atingir a meta de déficit zero em 2025 e manter as contas públicas sob controle, o equivalente a 30,5% dos benefícios tributários.
Apenas o Simples, que lidera a lista,
representa 22,2% das renúncias de impostos, com R$ 121 bilhões. A relação ainda
inclui isenções ao agronegócio (R$ 83 bilhões), deduções e rendimentos isentos
no Imposto de Renda (R$ 92 bilhões), benefícios a entidades sem fim lucrativo
(R$ 46 bilhões), Zona Franca de Manaus (R$ 30 bilhões), medicamentos,
microempreendedores individuais, informática, setores automotivo, habitacional,
de eventos, embarcações e aeronaves, cultura e audiovisual, ensino
universitário e várias outras rubricas.
A distribuição dos incentivos revela as
prioridades de governos e o trânsito dos grupos de interesse por Brasília. Para
o ano que vem, preveem-se R$ 7,7 bilhões à indústria automotiva, mas apenas R$
345,4 milhões à gestão ambiental, rubrica relacionada ao controle de
desmatamento e queimadas. Gerir é, antes de tudo, estabelecer prioridades — e
parece evidente que elas estão mal estabelecidas no Orçamento.
A ministra do Planejamento, Simone Tebet, tem
defendido mudanças no Simples para aumentar a arrecadação e reconhece “erros e
fraudes” noutros incentivos tributários. Ela sugere uma Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) para que, com o tempo, esses benefícios cheguem, de forma
escalonada, a 2% do PIB, patamar compatível com países similares ao Brasil.
Não está em questão a necessidade de oferecer
apoio a segmentos da economia ou da sociedade por meio de renúncias
tributárias. Qualquer país adota políticas do tipo. A discussão relevante tem a
ver com a necessidade de mais transparência nessas isenções, de critérios
objetivos para definir prioridades e de avaliações constantes de eficácia, para
evitar a perpetuação de subsídios sem justificativas. É extensa a lista de
projetos e políticas sustentados com dinheiro do contribuinte sem retorno para
a sociedade — dos semicondutores brasileiros à extinta Sunamam. É tarefa do
Executivo e do Congresso evitar que casos como esses se repitam e zelar por uma
política eficaz de subsídios e incentivos tributários.
Eleição na Amazônia reflete desafio de acabar
com o desmatamento
O Globo
Cidades com garimpo clandestino e madeireiras
ilegais elegeram prefeitos autuados por autoridades ambientais
Não é surpresa que, nos principais centros do
agronegócio brasileiro, os eleitores tenham escolhido prefeitos mais
comprometidos com a produção que com a questão ambiental. Oito das dez cidades
mais ricas em estados como Mato Grosso, Goiás e Bahia elegeram políticos de
legendas como União Brasil, PL, Republicanos e PP. O setor agrícola que move a
economia brasileira tem buscado representação política, e parece claro que os
partidos de esquerda — em geral defensores das causas ambientais — não têm
apresentado propostas capazes de sensibilizar esse eleitorado. Um efeito
indesejado dessa situação tem sido a representação fraca da agenda ambiental em
alguns municípios onde o combate ao desmatamento é prioritário, especialmente
na Amazônia.
Cidades que ocupam o topo do ranking de
desmatamento elegeram prefeitos que foram, eles próprios, alvo de autuações por
órgãos ambientais. É o caso de Apuí (AM), Marcelândia (MT), Lábrea (AM),
Colniza (MT) e São Félix do Xingu (PA). Como mostrou
reportagem do GLOBO, esses municípios somam mais de 488 quilômetros quadrados
de área devastada neste ano, segundo dados do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Ocupando o segundo lugar no ranking de
desmatamento e o quarto no de queimadas em 2024, Apuí elegeu prefeito o
fazendeiro Antônio Maciel Fernandes (MDB), autuado sete vezes por órgãos
ambientais entre 1999 e 2022. As infrações foram motivadas por atos como
derrubar ou danificar florestas em áreas de preservação, usar fogo sem
autorização e instalar sem licença represas que alteram o regime dos cursos
d’água. A eleição de nomes como Maciel está vinculada ao peso que atividades
nocivas ao meio ambiente, como extração ilegal de madeira ou garimpos
clandestinos, ainda têm na economia desses municípios.
Políticos e moradores dessas cidades costumam
rechaçar os responsáveis pela fiscalização ambiental. Em agosto, uma operação
conjunta da Polícia Federal, da Funai e do Ibama contra o garimpo ilegal no Rio
Madeira resultou num violento confronto entre garimpeiros e agentes. No governo
passado, ações contra o garimpo ilegal costumavam gerar romarias de prefeitos a
Brasília para se queixar dos órgãos ambientais.
Na Amazônia, as atividades que deterioram o
meio ambiente continuarão a contar com apoio de políticos e das populações
locais enquanto os governos não oferecerem alternativas de produção
sustentável. A dificuldade para retirar os milhares de garimpeiros ilegais que
ocupam a reserva ianomâmi ilustra o problema. A despeito de seguidas operações
com destruição de maquinários, eles sempre reaparecem. As cidades que
enriquecem com o agronegócio produtivo e ambientalmente sustentável oferecem
uma resposta apenas parcial à questão da Amazônia. A situação não mudará
enquanto o enorme contingente ocupado nas atividades ilegais não for absorvido
em projetos que assegurem renda e, ao mesmo tempo, garantam a preservação da
floresta.
A degeneração da competição eleitoral
O Estado de S. Paulo
Recursos oficiais e espúrios para campanhas
eleitorais, como o Fundo Eleitoral e as emendas parlamentares, estão
estrangulando a competição democrática e ampliando a concentração de poder
Muito se tem falado em “ataques à
democracia”. A invasão das sedes dos Três Poderes no 8 de Janeiro de 2023
chocou o País. Mas os vândalos e golpistas foram reprovados pela esmagadora
maioria da população e estão sendo condenados pela Justiça. O que acontece, no
entanto, quando o ataque é orquestrado pelos próprios representantes eleitos e
financiado com dinheiro do contribuinte? Com a conivência do Executivo, o
Legislativo institucionalizou o abuso do poder político e econômico, e esse
abuso está sangrando o coração da democracia: as eleições.
Em 2017, após o Supremo Tribunal Federal
declarar inconstitucional o financiamento de campanhas por empresas, os
congressistas aprovaram um Fundo Eleitoral de R$ 1,7 bilhão. O valor
assumidamente alto foi justificado como um mecanismo de transição até que os
partidos, como entes privados que são, se organizassem para se sustentar com
doações de seus simpatizantes. Não foi o que aconteceu. De lá para cá o valor
só aumentou. Neste ano foram destinados R$ 4,9 bilhões às campanhas.
Apologistas do Fundo alegam que a “democracia
tem um custo” e que ele garante a pluralidade e a renovação. Mas, para começar,
o “custo” da democracia brasileira não tem paralelo no planeta. Uma pesquisa
apresentada na Câmara dos Deputados comparando 33 países identificou que já em
2020 os gastos públicos com campanha (R$ 2,03 bilhões) foram 45% maiores que os
do segundo colocado, o México, e sete vezes maiores do que a média.
Um levantamento do Instituto Millenium nas
eleições de 2022 comprovou que, ao invés de gerar igualdade de oportunidades a
minorias (candidatos pobres, negros, mulheres ou neófitos), os recursos são
concentrados nas mãos de poucos candidatos, ricos, homens e brancos e que
concorrem à reeleição. Ou seja, o Fundo não só é custoso, como, longe de
nivelar o jogo, acentua desigualdades e a concentração de poder. Nas eleições
deste ano, a taxa de reconduções dos prefeitos foi de 81,4%, a maior da
história, superando o pico de 63,7% em 2008.
Para agravar exponencialmente a degeneração
da competição eleitoral, na última década as emendas parlamentares – recursos
da União distribuídos pelos parlamentares a Estados e municípios – saltaram de
4% do orçamento discricionário (volume já fora da curva mundial) para mais de
20%, ao mesmo tempo que os critérios técnicos e os mecanismos de transparência
da distribuição eram desmantelados.
Segundo apuração do Estadão, em 25 das
28 cidades que mais receberam emendas per capita desde 2021, os
prefeitos eleitos no domingo foram apoiados por um “padrinho” no Congresso, e
23 deles são de partidos do Centrão. Um levantamento do jornal O Globo com
os 178 municípios que mais receberam emendas revelou que em 100 o incumbente
foi reeleito e em 45 fez um sucessor do mesmo grupo político. Nas cidades onde
os prefeitos concorreram à reeleição, a taxa de recondução foi de quase 90%,
podendo chegar a 94% no segundo turno.
Eis o paradoxo: a perpetuação dos poderosos
no poder sugeriria que estão fazendo uma boa gestão e os serviços públicos
funcionam às mil maravilhas, mas essa conclusão esbarra nos baixíssimos índices
de confiança da população em relação aos políticos e aos partidos em geral, bem
como ao Congresso.
O sistema representativo nacional está
capturado por um círculo vicioso. Vivendo confortavelmente de dinheiro público,
os partidos se desobrigam de mobilizar simpatizantes, aliciam eleitores nos
períodos eleitorais e depois lhes dão as costas, dedicando-se a administrar
seus feudos controlados por uns poucos caciques que não sofrem pressão nem dos
filiados nem do poder público para prestar contas. A distância entre os
partidos e a população só aumenta, e a crise de representatividade é
escancarada em válvulas de escape como os protestos de 2013 ou a súbita
ascensão de candidatos ditos “antissistema”, como Jair Bolsonaro em 2018 ou
Pablo Marçal em 2024.
Surtos de revolta como o do 8 de Janeiro não
acontecem no vácuo. Esses ataques à democracia são, por óbvio, injustificáveis,
mas ninguém pode dizer que sejam inexplicáveis.
A tragédia das crianças sem saneamento
O Estado de S. Paulo
Estudo do Instituto Trata Brasil mostra que a
renda futura de crianças sem acesso a água e esgoto tratados é 46,1% menor,
pois sua formação básica é brutalmente prejudicada
A falta de saneamento básico no Brasil faz
com que 6,6 milhões de crianças de zero a seis anos, a chamada primeira
infância, afastem-se de suas atividades, de acordo com o estudo Futuro em
risco: efeitos da falta de saneamento na vida de grávidas, crianças e
adolescentes, divulgado recentemente pelo Instituto Trata Brasil. Esse
contingente de crianças, que equivale à população do Paraguai, segue sendo
negligenciado na fase da vida que é, segundo múltiplas evidências nacionais e
internacionais, determinante para um futuro digno.
Sem acesso a esgoto tratado e a creches, ou
às vezes sem poder frequentar a creche, quando esta existe, justamente porque
falta saneamento na região em que vivem, parte significativa das crianças
brasileiras cresce com uma herança nefasta, traduzida por uma renda 46,1% menor
na idade adulta, de acordo com o estudo. Considerando-se um período de 35 anos
de atuação profissional, a diferença de renda entre quem conta e quem não conta
com saneamento básico é de mais de R$ 126 mil, montante nada trivial em um país
tão desigual quanto o Brasil. Eis o preço do eterno descaso brasileiro com o
saneamento: a renda futura de quem não conta com saneamento básico nos
primeiros anos de vida é significativamente menor do que a daqueles que
simplesmente têm, ora vejam, o básico.
O estudo do Trata Brasil radiografa uma série
de efeitos nefastos que vão se acumulando na vida de quem não conta com
saneamento na primeira infância. Sem água tratada ou banheiro, crianças de 11
anos têm dificuldade para identificar as horas em um relógio ou para calcular o
valor de um troco, habilidades básicas e extremamente necessárias no dia a dia.
E esse é apenas um exemplo do quanto a falta do mínimo trava a capacidade de
aprendizado e, por consequência, de ascensão social. Crianças que viveram a primeira
infância em condições precárias de saneamento chegam à segunda infância (7 a 11
anos) com sequelas no desenvolvimento e têm notas sensivelmente mais baixas em
avaliações como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Não é
surpresa, então, que jovens de 19 anos sem acesso a saneamento tenham, em
média, atraso de 1,8 ano na escolaridade.
Garantir acesso a água e esgoto tratados, bem
como a educação, é o melhor investimento que o País pode fazer em nome do
bem-estar da população brasileira e de seu próprio futuro. Sem esgoto tratado,
milhões de brasileiros estão expostos a enfermidades que deveriam pertencer ao
passado, sobrecarregando e onerando o sistema de saúde, faltam às aulas (quando
e se há escola), aprendem pouco ou quase nada, como demonstram indicadores
nacionais e internacionais de educação, e tornam-se adultos despreparados e dependentes
de ajuda governamental.
Por não fazer o básico, o Brasil lega a uma
parcela significativa da população um futuro medíocre e de dependência, que
ademais custa caríssimo ao País; manter programas sociais para quem deles não
dependeria houvesse saneamento e educação básica é extremamente deletério para
a economia brasileira, que se autocondena a um permanente atraso em relação aos
países nos quais as crianças conseguem desenvolver suas habilidades e se
tornarem adultos capazes por terem acesso a esgoto tratado e creche.
Nada indica, porém, que essa realidade vai
mudar. Em relação ao saneamento especificamente, mesmo quando há avanços,
anda-se para trás. Aprovado pelo Congresso em 2020, o Marco do Saneamento
estabeleceu que, até o fim de 2033, 99% da população terá de ser atendida com
água potável e 90% deverão ter coleta e tratamento de esgoto. No entanto,
diferentes associações estimam que, no ritmo atual de investimentos, as metas
de universalização serão atingidas, na melhor das hipóteses, apenas em 2046.
Por trás de tanta morosidade, sobra cálculo
político. Diz o conhecido adágio eleitoral que “cano enterrado não dá voto”,
razão pela qual se investe pouco em saneamento. Ademais, crianças também não
votam, e assim o Brasil segue condenando seu futuro, desde cedo, à dependência.
A barbárie segue vencendo
O Estado de S. Paulo
Extinção de penas é novo capítulo da história
de impunidade do massacre do Carandiru
A Justiça paulista extinguiu as penas
impostas a todos os policiais militares envolvidos no horrendo massacre do
Carandiru, ocorrido no dia de 2 de outubro de 1992. No âmbito estadual, a
decisão era esperada. Afinal, a 4.ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de
Justiça de São Paulo (TJ-SP), que declarou extintas as penas, não poderia
deixar de seguir o controvertido entendimento do Órgão Especial do próprio
TJ-SP, que, em agosto deste ano, considerou constitucional o indulto concedido
em 2022 pelo então presidente Jair Bolsonaro aos policiais assassinos.
Esse é o mais novo capítulo de uma longa
história de impunidade e de desrespeito à Constituição que já dura 32 anos. Não
é o último. O Supremo Tribunal Federal (STF) ainda haverá de julgar o mérito de
uma Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) interposta em dezembro de 2022
pelo então procurador-geral da República, Augusto Aras, por meio da qual o
Ministério Público Federal pede que os efeitos do indulto de Bolsonaro não
sejam aplicados aos policiais que perpetraram o massacre.
Na ADI, Aras argumenta, com toda razão, que o
extermínio de 111 presos durante uma rebelião na extinta Casa de Detenção de
São Paulo não era tecnicamente classificado à época como crime hediondo,
portanto, impassível de indulto. Mas, prossegue o então procurador-geral, “o
decreto presidencial que concede o indulto natalino não pode alcançar os crimes
que, no momento da sua edição, são definidos como hediondos, pouco importando
se, na data do cometimento do crime, este não se qualificava pela nota de hediondez”.
Ou seja, Bolsonaro deveria ter seguido o
ordenamento jurídico brasileiro ao conceder seu último indulto de Natal na
Presidência da República. Mas o que é a lei para alguém como Bolsonaro senão um
detalhe por vezes inconveniente? Bolsonaro sempre esteve mais preocupado com
seus próprios interesses do que com qualquer outra coisa, como é notório. A
desvirtuação do nobre instituto do indulto presidencial, redigido sob medida
para beneficiar os 74 policiais militares condenados por aquela barbárie, foi
um agrado do então presidente à sua base de apoio, na qual se incluem muitos
militares e agentes das forças de segurança.
O indulto tem uma natureza humanitária que
vem de séculos atrás. Não se trata de concessão política, muito menos
eleitoreira. Em poucas linhas, no Estado Democrático de Direito moderno o
indulto representa a renúncia do Estado a seu direito inalienável de punir
cidadãos que transgridam as leis tendo em vista, principalmente, o princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana. Mas esta jamais foi a orientação
de Bolsonaro. Seu objetivo era sinalizar que a violência policial não só é
aceitável, como recomendável em nome de uma política de segurança torpe que
pode ser resumida na máxima “bandido bom é bandido morto”.
Agora, recai sobre o STF a única esperança que resta aos cidadãos que não confundem justiça com “justiçamento” e desejam ver o Brasil sob a égide do Estado Democrático de Direito em toda a sua plenitude, garantindo os direitos fundamentais de todos os cidadãos, criminosos ou não.
Não basta punir mais o feminicida
Correio Braziliense
Penas mais duras para crimes violentos
ressaltam o poder coercitivo do Estado, característico de sociedades que ainda
não encontraram um grau de civilidade entre seus membros
Na última quinta-feira, o Brasil endureceu as
penas para quem comete feminicídio. Por meio de sanção presidencial, passou a
vigorar o Projeto de Lei nº 4.266 de 2023, que estabelece até 40 anos de prisão
a quem retira a vida de uma mulher em razão de sua essência.
É um debate clássico no direito penal sobre a
efetividade punitivista para coibir a ocorrência de crimes. Inclui-se na
discussão, por exemplo, a aplicação da pena capital, como ocorre em dezenas de
localidades dos Estados Unidos e em outros países. Há muita controvérsia acerca
da medida extrema de executar um criminoso como forma de alertar a sociedade
sobre condutas ilícitas, bem como contesta-se a ideia de que o Estado, em
última instância, tem o poder sobre a vida do indivíduo.
É conhecido também o argumento de que penas
mais severas não necessariamente diminuem a ocorrência de crimes violentos.
Tome-se novamente como exemplo os Estados Unidos, onde muitos juristas
sustentam que a pena capital não reduziu os índices de violência. O caso do
Brasil também indica contradição semelhante. Apesar de a legislação prever até
40 anos de pena máxima, o país permanece entre os mais violentos do mundo. Ou
seja, a pena em si não garante a paz social, muito menos doméstica.
É precisamente esse ponto que juristas da
corrente garantista sustentam. No caso do feminicídio, há quem considere a
medida insuficiente para demover um agressor de interromper os ataques à
vítima. "A aprovação desse projeto se dá pelo avanço do discurso
punitivista no Brasil. Aumentamos as penas e vamos dormir tranquilos. O crime
vai diminuir? É claro que não. Esse é um debate simplista, que não resolve o
problema de ninguém, menos ainda das mulheres que morrem todos os dias, vítimas
da violência doméstica", sustentou a ministra do Superior Tribunal de
Justiça Daniela Teixeira, em entrevista ao Correio.
A magistrada se junta ao entendimento de que
não basta aumentar as penas. É preciso interromper o ciclo de violência logo
nos primeiros sinais; adotar medidas dissuasórias, como o afastamento imediato
do agressor da convivência com a vítima; dar mais celeridade na aplicação de
penas antes que se chegue a um feminicídio; implementar políticas de estímulo à
denúncia; fomentar a educação de gênero no âmbito escolar e profissional. Como
se vê, não basta apenas uma punição mais severa para impedir um homem de matar
uma mulher.
Penas mais duras para crimes violentos
ressaltam o poder coercitivo do Estado, característico de sociedades que ainda
não encontraram um grau de civilidade entre seus membros. O castigo por si só
pode trazer algum conforto moral e ético, mas é incapaz de impedir que a
violência seja combatida por meio de mais violência, praticada pelo poder
público. Para conter o flagelo do feminicídio, o Estado e a sociedade
brasileira precisam fazer mais.
Limitar decisão monocrática ajuda equilíbrio
institucional
Folha de S. Paulo
Esse é o único projeto meritório aprovado na
CCJ da Câmara; permitir que Congresso suste ordens do STF seria retrocesso
As decisões monocráticas, pelas quais um dos
11 ministros do Supremo Tribunal Federal arbitra, a título precário, sobre
litigâncias que não raro envolvem somas e questões gigantescas, são uma
decantada anomalia brasileira. Acabar com elas, ou reduzi-las ao mínimo
necessário, deveria ser objetivo de todos os que almejam uma institucionalidade
mais equilibrada.
Por isso, a proposta de emenda à Carta que
praticamente fulmina o poder do juiz da corte de suspender sozinho os efeitos
de leis aprovadas no Congresso e sancionadas pelo presidente da República
deveria ser encarada como um avanço —a despeito de a motivação por trás de
muitos apoiadores do diploma ser a de desfechar uma vendeta contra o STF.
O projeto, aprovado por 64% dos senadores em
novembro de 2023, recebeu nesta quarta (9) o aval
da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. Ele também
estipula prazo de seis meses após a concessão de liminar para que o colegiado
do tribunal decida o mérito das ações que pleiteiam a declaração de
inconstitucionalidade de uma lei.
Há virtudes em ambos os movimentos. Ao
circunscrever o período em que a validade de um diploma legal permanece em
dúvida, a PEC favorece a segurança jurídica. Ao restringir a atuação solitária
de ministros, ela valoriza a colegialidade, a pedra angular de um tribunal
constitucional.
A proposta não retira nem sequer um milímetro
do poder da corte. Na verdade o fortalece.
O mesmo não
se pode dizer dos outros projetos que versam sobre o Supremo
também aprovados pela CCJ da Câmara. Nesse caso, o ânimo de ir à forra contra o
tribunal —que mantém suspensa a execução das bilionárias e opacas emendas
parlamentares— reduz competências do Judiciário e carrega apenas elementos
nocivos ao equilíbrio institucional.
A maior aberração seria conceder ao
Congresso, como dispõe um desses projetos, o poder de suspender decisões do
STF. O princípio civilizatório da separação dos Poderes, cláusula pétrea da
Constituição de 1988, restaria irremediavelmente conspurcado pela medida, que
transformaria o Legislativo federal num Leviatã.
Também não passam no teste de integridade as
propostas que ampliam casos em que ministros do Supremo estariam sujeitos
a impeachment.
Trata-se de tentativa rasteira de intimidação por uma franja de lunáticos que
abraçou o autoritarismo bolsonarista e deseja ver a corte de joelhos.
Não há dúvidas de que o Supremo deveria ser
mais reverente ao produto de tramitações legislativas, que envolvem votações
majoritárias de representantes eleitos pela população em duas Casas
independentes. O método para atingir esse objetivo, porém, não pode ser a
subtração de prerrogativas da Justiça nem a ameaça.
Enfrentar o problema com maturidade deveria passar pelo reconhecimento, pelo Congresso, de suas próprias exorbitâncias, como o gasto ciclópico com emendas e fundos partidários.
China eleva incerteza sobre desempenho
econômico
Folha de S. Paulo
Pacote frustra mercado, com valor abaixo do
esperado; dependentes das demandas de Pequim, como Brasil, ficam em alerta
Depois de se tornar um motor da economia mundial
no início deste século, com taxas de crescimento acima dos 10% anuais, a China hoje enfrenta
dificuldades consideráveis para alcançar a meta anunciada de ao
menos 5% neste ano e no próximo. Um prometido pacote fiscal de estímulo à
atividade, anunciado na semana passada, mostrou-se uma decepção.
O politburo chinês determinou a injeção
de 200 bilhões de iuanes (R$ 156 bilhões) no mercado doméstico e
em obras de infraestrutura. Para as dimensões do Produto Interno Bruto do país
emergente, é pouco.
O valor representa apenas 10% do volume de
recursos indicado por Pequim,
uma semana antes, para alcançar tal objetivo. A expansão fiscal requerida é
estimada em cerca de 2 trilhões de iuanes (R$ 1,56 trilhão) —metade do valor
oficial despendido durante a crise mundial de 2008.
Há
expectativas de novos pacotes surgirem ainda neste ano. Contudo,
apesar de o mais recente ter frustrado o mercado, certamente consolidou no
politburo a convicção de que o rumo seguido até o momento, centrado em
agressivas exportações, não trará os resultados esperados.
Assim como no pós-2008, a China volta-se ao
mercado doméstico como fonte primordial de geração de riqueza. Uma parte do
pacote prevê incentivos antes repudiados pelo líder Xi Jinping.
As medidas devem contemplar do incentivo às
famílias e empresas para a troca de equipamentos, veículos e eletrodomésticos
por modelos ecológicos à concessão de ajuda do governo para casais que tiverem
mais de um filho.
As medidas fiscais, a rigor, complementam as
decisões do Banco Central chinês no fim de setembro, quando cortou a taxa de
juros básica e baixou o custo das hipotecas, um sorvedouro dos ganhos das
famílias.
O BC igualmente prometeu subsídios e outras
benesses para impulsionar o mercado acionário, ainda combalido pelos efeitos da
crise imobiliária. O setor de construções, por sua vez, será beneficiado pela
outra metade do pacote fiscal.
A incerteza sobre o desempenho da economia
chinesa certamente traz sinais de alerta para os países mais dependentes de sua
voracidade por commodities, como é o caso do Brasil.
O gigante asiático vai se deparando com
limites, a começar por sua dívida pública, que hoje passa dos 85% do PIB, o dobro do
patamar de dez anos atrás. Mesmo que venha a intensificar o uso de dinheiro
público para aquecer a demanda interna, esse não é expediente de eficácia
duradoura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário