O Estado de S. Paulo
Cidadãos favoráveis a uma democracia liberal deveriam mostrar-se mais preocupados com as manobras de parlamentares contra o STF
O Brasil ainda é uma democracia graças ao Supremo Tribunal Federal (STF), alvo principal dos golpistas de janeiro de 2023, das ações antidemocráticas da extrema direita e das ameaças lançadas na reunião ministerial de 22 de abril de 2020. Ministros da Corte Suprema são acusados de invadir as áreas de competência de outros Poderes. Um conflito desse tipo ocorreu, por exemplo, quando o ministro Flávio Dino suspendeu o pagamento de emendas orçamentárias e cobrou transparência na destinação de recursos. Estava extrapolando suas atribuições ou defendendo, simplesmente, direitos básicos da cidadania? Convém lembrar esses fatos quando congressistas propõem limitar poderes dos ministros, autorizar o Congresso a anular julgamentos do STF e definir novo rito para impeachment dos juízes da Corte.
Tecnicalidades à parte, a iniciativa desses
parlamentares é uma tentativa de enfraquecer o Judiciário e de recompor o
sistema de Poderes da República. Não se trata apenas de atualizar a
Constituição por meio de emendas limitadas, mas de mudar o regime. Não há,
neste caso, consulta explícita e ampla aos cidadãos. Não se elege uma
assembleia constituinte para discutir e decidir a mudança. Por meio de um
processo aparentemente normal, tenta-se recompor as funções legislativa,
executiva e judiciária, fontes da denominação da Praça dos Três Poderes.
O quadro seria diferente se parlamentares
apenas propusessem discutir – e eventualmente rever – o alcance das decisões
individuais dos ministros. Mas as mudanças defendidas são muito mais amplas.
Incluem, por exemplo, a atribuição ao Congresso de autoridade para rever e
anular decisões do Supremo. Além disso, discute-se uma alteração do processo de
impeachment de ministros do Tribunal. Pretende-se uma redistribuição da
autoridade entre os Poderes da República.
Se a reforma se consumar, Brasília abrigará
um Judiciário enfraquecido e um Legislativo superempoderado. Senadores e
deputados acumularão as funções de produzir leis, de interpretá-las e de
pronunciar a palavra final sobre a sua constitucionalidade e a sua aplicação.
Ditadores do período militar achariam mais normal, quase certamente, atribuir
essas tarefas ao Executivo. Mas seriam capazes de entender e de apreciar a
concentração de poderes.
Cidadãos favoráveis a uma democracia liberal
deveriam, talvez, mostrar-se mais preocupados com as manobras de parlamentares
contra o Judiciário. Se dessem maior atenção ao dia a dia de Brasília,
encontrariam pelo menos dois novos motivos de inquietação. O mais evidente
seria a tentativa de congressistas de limitar a autoridade do STF. O segundo
seria o risco de eliminação do atual equilíbrio entre os Poderes da República.
Pessoas um pouco mais atentas poderiam lembrar a importância do Supremo como
grande barreira contra o golpismo.
A indisfarçável campanha contra os poderes do
STF tem ficado evidente na cobertura diária de Brasília, embora os meios de
comunicação nem sempre acentuem os possíveis efeitos institucionais do
conflito. Para muitos leitores, ouvintes e telespectadores, o noticiário talvez
esteja apenas mostrando, mais uma vez, as costumeiras brigas e intrigas entre
autoridades pouco interessadas em questões de relevância pública. Se é esse o
caso, por que um cidadão perderá tempo acompanhando baixarias distantes de seus
problemas, ambições e necessidades? A distância entre Brasília e a maior parte
dos brasileiros é muito mais que geográfica.
Para a maior parte dos brasileiros, as brigas
de Brasília devem parecer pouquíssimo relevantes. Ganhar a vida com o trabalho
do dia a dia deixa pouco tempo para preocupações políticas. As poucas horas
livres são preenchidas mais facilmente, e de modo mais agradável, com novelas e
shows de tevê. Na maior parte das ocasiões, é compreensível, sensato e
justificável o distanciamento dos conflitos brasilienses. Poucos cidadãos devem
ter tempo, informação e condições práticas de acompanhar os fatos da política
nacional e as encrencas entre autoridades. Mas algumas dessas brigas são
importantes e podem afetar a liberdade e os direitos dos cidadãos.
O risco é especialmente significativo quando
o conflito opõe Poderes da República, como ocorreu, nos últimos dias, na
disputa entre Legislativo e Judiciário. A disputa pode ser particularmente
perigosa quando envolve o possível encolhimento de um dos Poderes e, portanto,
uma alteração do equilíbrio entre as grandes funções. Confrontos dessa natureza
podem produzir efeitos positivos, no entanto, quando favorecem a definição mais
clara da autoridade e dos papéis de cada instituição.
Mas não há como evitar a inquietação quando a
disputa resulta de faltas cometidas por integrantes de um dos Poderes. Falhas
do Legislativo têm sido o argumento usado por membros do Judiciário para
justificar aparentes excessos e intromissões. É difícil contestar esse
argumento. Além de ter sido nos últimos anos a principal barreira antigolpista,
o STF tem-se caracterizado como um Poder especialmente ativo – um bom exemplo,
talvez, para o Legislativo e o Executivo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário