Folha de S. Paulo
A compulsão decorre de uma seriação detentora
do poder imaginário de redefinir as condições reais de vida
Bastou a Alexei Ivanovitch jogar uma única vez para que o vício se instalasse (Dostoeivsky em "O Jogador"), com todas as consequências de destruição e ruína. Para o adicto, o fundamento do jogo não é ficar milionário, mas substituir o tempo real por uma mitologia que absorve a angústia do tempo e da morte. A compulsão decorre de uma seriação detentora do poder imaginário de redefinir as condições reais de vida e finitude. O motor neurótico do sistema, verdadeira raiz da paixão, é ganhar e perder sem fim, satisfação e decepção, até que o jogador se autodestrua.
Nessa época de intenso pessimismo político,
moral e cultural, é também essa a lógica da religião da matéria oferecida como
consolação às massas pelos cultos da prosperidade. Aposta-se que um
investimento monetário em Deus retornará multiplicado. E o crupiê pastoral
adverte que é a primeira coisa a fazer com o salário, pois "Deus não gosta
de restos".
Na roleta financeira, os lances são
altíssimos, claro, para quem pode. Mas é idêntica a pulsão: o corpo-imagem do
sujeito, fabricado pelas novas tecnologias da comunicação, é instado a
experimentar o gozo imediato do risco.
Agora soou um alarme: os populares jogos de
apostas online, conhecidos como bets, são suspeitos de afetar
negativamente o bem-estar da população e a economia nacional.
"Ludópata" é a designação científica para o viciado, cujo tratamento
ainda não encontra lugar em clínicas médicas.
A questão não é, porém, terapêutica. Sob o
capitalismo algorítmico, toda estrutura social passa a funcionar como cassino.
O projeto neoliberal consiste no desmantelamento do estado de bem-estar social
e na definição do indivíduo como criador único de si mesmo, livre para a
obtenção de riquezas. Cada um rodando em torno de si próprio, como uma roleta.
Esse giro, se excessivo, beira a catástrofe.
O nazifascismo foi um giro alucinado e maquinal ao redor dos próprios
princípios, sem admitir relações nem limite externo, ou seja, a essência mesma
da loucura. O fenômeno ressurge como forma soft de poder, em que se imbricam a
razão econômica, a digital e a biológica, para acabar com a distinção entre
homem e máquina, entre espírito e matéria. O culto da prosperidade é aspecto
popular dessa despercebida religião inespiritual, que absorve crentes e ateus.
Jogos de azar, sempre houve. O que agora
acontece é a perfeita adequação entre risco e uma ordem social voltada para a
construção do sujeito como empreendedor individual, descomprometido com o
comum. Mas o capital disponível contempla só as classes abastadas. Nas
subalternas, a carência é consolada pela retórica da prosperidade, que não
aponta para trabalho produtivo, e sim para o imaginário da riqueza aleatória.
Aposta-se em tudo: na sobrevivência pessoal,
no templo e agora nas bets, o novo cassino online, que o governo se
empenha em legalizar, interessado apenas em arrecadar. A Fazenda
criou até mesmo uma Secretaria Geral de Apostas e Prêmios. Bet é nada menos que
o crack virtual, obscenamente oferecido a crianças, que
se tornam crupiês mirins. Fala-se em ludopatia epidêmica, mas se
esconde a fonte verdadeira da compulsão. A hipocrisia é oficial.
Um comentário:
Excelente texto.
Até compartilhei trechos.
👏🏻👏🏻👏🏻
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