domingo, 22 de dezembro de 2024

Entre Covid e Trump - Celso Rocha de Barros

Folha de S. Paulo

Furdunço de Satã ajuda a entender importância para governo em apoio a esforço fiscal de Haddad

O debate econômico atual talvez fique menos barulhento se o situarmos dentro do contexto mundial repleto de incertezas em que vivemos.

Na fase atual pós-Covid, o mundo todo sofre com níveis altos de endividamento público, inflação e juros, tudo ao mesmo tempo.

Ainda há controvérsias sobre o que gerou esse cenário.

Um dos suspeitos é o gasto governamental durante a pandemia. Em sua última live como presidente do Banco Central na última sexta-feira (19), Roberto Campos Neto lembrou que cerca de 20% do PIB mundial foi gasto para combater a Covid-19. Esse dinheiro pode ter aquecido a economia, aumentado a demanda e ajudado a gerar inflação e dívida.

Outro suspeito é a desorganização das cadeias produtivas durante a pandemia. Com restrições de movimento e circulação, a produção de muitos bens pode ter sido prejudicada, reduzindo a oferta e, desta forma, aumentando os preços.

Nesse cenário, muitos economistas – e o FMI – têm pedido aos governos mundo afora para que segurem o gasto público. Seria uma maneira de desaquecer a economia e combater a inflação, sem precisar subir ainda mais os juros. Afinal, dívida alta que cresce no ritmo de juro alto pode sair de controle.

Enquanto essa difícil operação era tentada em vários países (inclusive aqui), os americanos elegeram Donald Trump. Se Trump implementar suas propostas protecionistas, a inflação deve subir, forçando o banco central americano a aumentar os juros. Se isso acontecer, acabaremos tendo que fazer o mesmo.

Esse mundo de comida cara e juro alto vem elegendo governantes de oposição no mundo todo nos últimos anos. O governo da Alemanha acaba de cair, o primeiro-ministro da França também, o do Canadá está quase. A esquerda perdeu na Argentina como situação e venceu no Uruguai como oposição. Trump perdeu uma eleição como governo e ganhou a seguinte como oposição. No pós-Covid, Lula ganhou uma como oposição e, ao que consta, disputará outra como governo.

Essa desvantagem do incumbente não é normal. Em geral, quem concorre à reeleição sai em vantagem. Pode usar a máquina a seu favor e anunciar medidas populares durante a campanha.

Ao que parece, governar entre a Covid e Trump é difícil no mundo todo.

Esse furdunço de Satã que é o mundo de hoje ajuda a entender por que é importante para o governo Lula apoiar o esforço fiscal de Fernando Haddad. Sob o choque do dólar a R$ 6, o Congresso poderia cortar isenções e subsídios para empresas (zeraria o déficit em um dia). O Judiciário poderia ao menos topar o fim dos supersalários.

Não, não é porque Lula esteja torrando dinheiro: o déficit desse ano será menor do que o previsto pelo mercado em janeiro. Mas o crescimento foi bem maior que o previsto. O impulso que Lula deu à economia com gasto público gerou mais crescimento do que gasto público costuma gerar.

Até aí, maravilha, mas a economia aquecida dificulta baixar os juros e aqui, como no resto do mundo, a dívida já está alta. Como já dissemos, dívida grande com juro alto é uma dinâmica ruim.

O mundo está particularmente ruim, com tendência de piora. É uma daquelas situações com pouca margem de erro e pouca clareza sobre onde está o acerto. Seria melhor nos movermos com cautela.

 

Nenhum comentário: