Folha de S. Paulo
Da Revolução Francesa à violência da PM em
SP, há presença do horror em estado puro
Para Antoine de Rivarol, polemista do século 18, a Revolução Francesa terminou quando acabaram as execuções em praça pública, e o povo já não mais cantava "ça ira, ça ira /les aristocrates on les pendra" ("vai dar certo, vai dar certo / vamos enforcar os aristocratas"). Ou seja, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade seriam coisa de intelectuais iluministas, enquanto à massa interessava o espetáculo da vingança pela guilhotina. Essa impulsão parece intemporal, próxima ao que os alemães conhecem como "Schadenfreude", o prazer de infligir sofrimento a outros.
As noções de sociopatia e psicopatia,
pertencentes ao campo cognitivo desse fenômeno, têm valência política. Mas não
são exclusivas de época nem de classe social. Ajudam a explicar o comportamento
da Polícia
Militar de São Paulo.
Uma sociopatia fardada é matriz da violência de
psicopatas contra marginais pés de chinelos, exibindo estatísticas ineficazes,
recuando apenas da boca para fora ante o alarme da mídia. À boca pequena, há o
consenso de que isso rende votos, de que extermínio teria grande aprovação
popular. O "tô nem aí" do governador é a frase mais
obscena do ano.
Os alvos críticos da agenda progressista
costumam ser os aparatos de Estado, a economia e as elites. É difícil sondar a
alma popular, as pesquisas surfam na superfície plebiscitária dos números. Daí
a surpresa quando ressoam vozes aprobatórias nos EUA para o assassinato de alto executivo da indústria da saúde. O ato frio do acusado, filho da elite americana, fica em
segundo plano pela aparência e educação do jovem.
Pode-se especular que o sentimento seria
outro se o assassino fosse negro. Ainda assim, o que está mesmo presente é a
violência latente, em intensidade variável, numa sociedade que favorece
impulsões de vingança. É possível lançar um olhar crítico para as estruturas,
as diferenças de classe em termos de renda e cultura. Mas há outro lado,
despercebido pelo racionalismo analítico, presente na grande literatura:
"Só se pode viver perto do outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de
ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um
descanso na loucura" (Riobaldo, em "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa).
Entretanto amor e ódio são modos fundamentais
de existência, permeáveis à passagem de um para o outro, o que se exacerba
quando a incivilidade é alimentada pelo debilitamento das instituições e dos
processos civilizatórios. Por isso, na percepção de desamparo ou de medo, em
plena modernidade civil, o odioso sentimento de vingança ainda se acende como
brasa do passado. Intemporal, ele irrompe na insegurança cidadã diante da
criminalidade ou de impiedades industriais. E, claro, preside à popularidade
eleitoral de sociopatas.
Sob a ponte da civilidade, escorre, surdo, o ódio, fonte do inaceitável. É o que sempre acontece nos picos de barbárie. Dirigentes que hoje o estimulam transbordam da lata de lixo da história como baratas refratárias ao espírito do tempo, que é avesso ao patológico "espírito de corpo" de tropas fardadas. O tempo vivido é de repúdio ao horror em estado puro do passado.
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