O Globo
Gisèle Pelicot abriu mão do anonimato, dos
óculos escuros, do silêncio e do horror para se libertar em público e
reconquistar a identidade
Em setembro último, quando emergiram os
primeiros detalhes do julgamento de monsieur Dominique Pelicot e sua confraria
de estupradores sob demanda, ficamos aparvalhados. Onde encaixar a depravação e
sordidez do nauseabundo crime coletivo cometido por pacatos cidadãos num
vilarejo do sul da França? Teria sido conveniente e tranquilizador se os réus
fossem aberrações sociais, praticantes de atos de ignomínia humana. Não foi o
caso. Eram todos bípedes comuns, tocando vidas modorrentas, banais. É isso que
assusta.
Na semana passada, Pelicot foi condenado a 20 anos de prisão por orquestrar o estupro coletivo de sua mulher, Gisèle, com participção de mais de 70 desconhecidos aliciados na região. Ao longo de quase uma década (2011 a 2020), esses corréus participaram de 92 sessões de abuso da vítima previamente sedada e “preparada” na cama pelo marido. O próprio Pelicot admitiu dopar e estuprar a esposa duas ou três vezes por semana, totalizando cerca de 1.400 violências. As altas doses de sedação à revelia a que Gisèle foi submetida fizeram com que tivesse lapsos de memória, desorientação e dores ginecológicas atrozes. Dominique Pelicot, tido como bom marido, a acompanhava nas visitas a especialistas. Sua motivação para também filmar e fotografar duas noras e uma filha enquanto dormiam?
— Manter o controle sobre elas — resumiu o
chefe da família.
Condenações por estupro são raras na França.
Levantamento divulgado em 2024 pelo Institut des Politiques Publiques revela
que 94% dos casos registrados em 2020 foram arquivados, e apenas 15% das
denúncias resultaram em condenação. Tem mais. Para um quinto da população
francesa adulta, forçar uma parceira a fazer sexo não configura estupro,
tampouco sexo forçado se a mulher estiver embriagada, adormecida ou incapaz de
manifestar consentimento.
— Para mim, estupro é agarrar alguém na rua —
definiu um dos abusadores de Gisèle Pelicot.
Em recente artigo para o New York Times,
Megan Clement, editora da newsletter Impact sobre políticas de gênero, explica
que o conceito de “consentimento” simplesmente inexiste na legislação francesa
sobre estupro — apenas “violência”, “coerção”, “ameaça”ou “surpresa” são
considerados fatores relevantes. Espera-se que, à luz do caso Pelicot, essa
lacuna colossal venha a ser corrigida. Durante o julgamento, um dos réus chegou
a declarar que o consentimento de Gisèle era irrelevante:
— Ela é a mulher de Dominique, ele faz o que
quiser com ela.
Clement também se debruça sobre o desdém que
a França laica e libertina reserva ao que considera puritanismo anglófono.
Grandes ícones do cinema e da cultura, como a eterna Catherine Deneuve, não se
acanham em considerar radical o movimento #MeToo, nascido do outro lado do
Atlântico na década passada. O próprio presidente Emmanuel Macron chegou a
manifestar seu desapreço pela “era de suspeição” que envolve figuras
preeminentes como Gérard Dépardieu, acusado de abuso e ataque sexual.
No caso Pelicot, não havia ninguém
preeminente. Dos 83 homens sondados, 72 concordaram em participar do estupro
coletivo na casa e na cama da vítima que nem conheciam. Entre os poucos que
declinaram do convite, não ocorreu a nenhum denunciar o plano à polícia.
E foi assim que um jornalista, um bombeiro,
um enfermeiro, um funcionário público, um soldado, um caminhoneiro, um
carpinteiro, um agente penitenciário, entre outros, participaram da macabra
romaria. Todos ignoraram o testemunho mudo do corpo inerte de Gisèle.
Apenas dois já tinham ficha policial por
violência sexual, e seis outros por violência doméstica. Um dos que foram seis
vezes à casa de Pelicot era HIV positivo, outros três transmitiram doenças
venéreas à vítima. Todos afirmaram acessar sites de pornografia, assim como 55%
dos cidadãos franceses. Todos normais em sua anormalidade.
Excepcional, apenas ela, a grande mulher do
ano 2024 — Gisèle Pelicot. Abriu mão do anonimato, dos óculos escuros, do
silêncio e do horror para se libertar em público e reconquistar a identidade. A
defesa dos acusados ainda tentou impedir que as centenas de horas de vídeos das
sessões de estupro, filmadas pelo marido, fossem mostradas no tribunal. Elas
seriam por demais “indecentes”e “chocantes”, argumentaram os causídicos;
poderiam perturbar “a serenidade e dignidade da Corte”. Gisèle bateu pé. A
vergonha já não a alcançaria:
— Ela, a vergonha, precisa mudar de lado —
sustentou.
Indagada se pretendia mudar de sobrenome para
que a família possa superar o trauma, essa serena mulher de 72 anos respondeu
com naturalidade:
— Ao contrário. Quero manter o nome para que
meus netos possam ter orgulho de mim.
Nous sommes tous Gisèle Pelicot.
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