CartaCapital
O Congresso Nacional não pode outorgar a si
próprio a condição de guardião máximo da Constituição, que compete ao Supremo
A crise do Estado de Direito legalista, bem
como o esgotamento do paradigma legal como única “tecnologia disciplinar”,
conforme expressão de Michel Foucault, abriu caminho ao surgimento do que
podemos chamar, vulgarmente, de Estado constitucional. Este, por sua vez,
implicou o rompimento do modelo de “democracia radical”, exacerbadora da
vontade majoritária.
Do mesmo modo, as ideias de supremacia e força normativa à Constituição geraram a necessidade de um órgão para regular o sistema, a jurisdição constitucional, destinada a reconhecer as fontes normativas e verificar a adequação dos seus produtos. Por essa razão, inclusive, reputa-se à Justiça constitucional a condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito.
A conformação jurídico-constitucional do
poder democrático e a juridicização da organização do poder político impõem que
o poder político, especialmente o capitaneado pelo Legislativo, seja exercido
conforme o figurino do Estado constitucional.
Realizadas as referidas premissas, discussões
relacionadas à concessão de anistia pelos atos golpistas e, mais recentemente,
a Proposta de Emenda Constitucional conhecida popularmente como “PEC
da Blindagem” nos levam a alertar que não cabe ao Legislativo a
determinação dos limites, bem como a extensão e o alcance, da nossa
Constituição, substituindo o Supremo Tribunal Federal em seu papel de
intérprete final e guardião. Ademais, a noção mais elementar de república
pressupõe responsabilidade no trato da coisa pública.
Se, de um lado, a realização do Estado
constitucional implica a preservação da esfera de livre decisão política do
legislador, ele obriga a conformidade com a Constituição. É no espaço de tensão
entre esses dois princípios que a análise da constitucionalidade da anistia
deve ocorrer.
Ao Judiciário cabe, nas democracias
contemporâneas, a interpretação última da ordem jurídica. Em países como os
latino-americanos, caracterizados por Constituições analíticas, diversas
decisões sobre da vida em comunidade e dos comportamentos humanos ocorrem no
âmbito da jurisdição constitucional.
É a primeira vez na nossa história em que
militares, ministros, ex-presidente da República e outros servidores públicos
da alta administração do Estado foram condenados
por tentativa de golpe de Estado. Até então, prevaleceram impunidade,
cegueira deliberada e anistia.
Sem que haja margem para tergiversações ou de
suposta necessidade de pacificação, a finalidade da pretensão
responsabilizatória não deve ser estritamente punir: precisamos deixar claro
para as próximas gerações que a sociedade brasileira rechaça ataques violentos
à Constituição e à democracia.
Se, antes, a palavra “golpe” pudesse, no
âmbito das ciências humanas em geral, significar uma reprovabilidade do jargão
político, agora é inequívoco que deve ser adotada para representar a prática de
um crime contra as instituições democráticas.
Subvertendo a lógica constitucional, o
Congresso Nacional não pode outorgar a si próprio a condição de guardião máximo
da Constituição. Não podemos admitir a tentativa de deslegitimação do
Judiciário e de esvaziamento do seu produto decisório por meio de uma
pretendida anistia, sob pena de esvaziamento do seu compromisso irrenunciável
com a democracia e com o Estado de Direito. Em suas condições e possibilidades,
o pacto constitucional rejeita qualquer pretensão dessa natureza, mesmo que por
iniciativa majoritária.
Jon Elster assinala que a Constituição, na
democracia, atua como mecanismo de autolimitação e de pré-comprometimento aos
órgãos ordinários de decisão política. Assim, é preciso que recordemos a
releitura do autor de uma passagem da Odisseia de Homero, na qual Ulisses
determina que o amarrem ao mastro de uma embarcação para não sucumbir ao canto
das sereias.
Para o autor, a Constituição, nas
democracias, possui finalidade similar às referidas amarras, quando se destina
a proteger determinados valores em face das inconsistências temporais e de
paixões momentâneas dos órgãos do Estado e políticos. A anistia e a “PEC da
Blindagem” em pauta são paixões momentâneas que, mesmo com grande apoio
parlamentar, não deve prevalecer em face do nosso pacto intergeracional. •
Publicado na edição n° 1381 de CartaCapital,
em 01 de outubro de 2025.
Nenhum comentário:
Postar um comentário