sábado, 27 de setembro de 2025

O elo perdido. Por Flávia Oliveira

O Globo

A quantidade de gente Brasil afora tornou visível a indignação sugerida no mundo virtual

Os holofotes, não sem motivo, se voltaram para os discursos de abertura da Assembleia Geral da ONU, em que Luiz Inácio Lula da Silva foi firme contra o tarifaço e a agressão dos Estados Unidos à soberania nacional, e Donald Trump indicou disposição para o diálogo com o brasileiro. Mas foi no dia seguinte, quarta-feira, numa reunião com líderes do mundo democrático, que o presidente da República tocou numa ferida que, faz tempo, dói. A democracia, ele disse, errou com a sociedade civil. Foi nesse vácuo que a extrema direita encontrou terreno fértil para se espalhar.

É bem-vindo o mea-culpa de Lula na semana que começou com brasileiras e brasileiros tomando ruas em protesto contra a agenda de autoproteção de parlamentares e um projeto de anistia jamais unânime. Acompanhamentos de redes sociais e pesquisas de opinião prenunciaram a insatisfação do eleitorado com um Legislativo empapuçado de emendas orçamentárias, bêbado de impunidade, esvaziado das prioridades populares. Da votação, na Câmara e no Senado, do projeto que aumentava para 531 o total de deputados, dois meses atrás, emergira a hashtag Congresso-inimigo-do-povo.

Em meados de setembro, o Datafolha apurou que 61% dos brasileiros se declaravam contra qualquer tipo de perdão aos responsáveis pelos ataques às sedes dos três Poderes no 8 de janeiro de 2023; 54% refutavam especificamente a anistia a Jair Bolsonaro. Dias depois da condenação pelo STF do núcleo crucial da trama golpista, entre os quais Bolsonaro, a Câmara pôs em marcha não só a votação acachapante do regime de urgência para um, até agora, desconhecido projeto de clemência ou redução de penas. Antes deste, os deputados chancelaram a blindagem contra investigações e prisões, por meio do que ganhou redes e ruas pela alcunha de PEC da Bandidagem.

O movimento, cabe destacar, foi protagonizado por partidos da extrema direita e do Centrão. O PL, de Bolsonaro e Valdemar Costa Neto, e o PRD votaram 100% a favor da PEC da Impunidade e da anistia. Legendas como Avante, Cidadania, Podemos, PP, Republicanos e União Brasil registraram proporções acima de 70% nas duas votações, calculou o cientista político Fábio Vasconcellos, professor na PUC-Rio e na Uerj.

A quantidade de gente nas manifestações Brasil afora tornou visível a indignação sugerida no mundo virtual e, solenemente, ignorada pelos parlamentares. Levantamento da Quaest mostrou que a PEC recebeu 2,3 milhões de menções em plataformas digitais, 83% negativas. Belo Horizonte, Salvador e Brasília tiveram atos como há muito não se via fora do bolsonarismo. Em São Paulo, a USP contou o mesmo número de manifestantes do feriado da Independência, quando aliados de Bolsonaro estenderam na Avenida Paulista uma bandeira dos Estados Unidos, avesso do patriotismo. No Rio, cerca de 42 mil pessoas foram protestar contra a anistia no dia (domingo) e no território (Praia de Copacabana), há quase uma década, associados a Bolsonaro.

Como resultado, o Senado sepultou a PEC. O bolsonarismo na Câmara ainda busca, ao menos, reduzir as penas dos condenados pelo golpe tentado. Mas a votação, prevista para quarta-feira passada, não deverá ocorrer nem na próxima. Tudo a ver com a reação popular ao açodamento desenfreado dos deputados. No mesmo domingo dos atos, ao chegar a Nova York para a agenda na ONU, Lula postou mensagem de apoio às manifestações. Também ali defendeu que o Congresso priorize os interesses da população. Três dias depois, diante dos líderes de Chile, Colômbia, Espanha e Uruguai, lembrou a fundação do Partido dos Trabalhadores para apontar o elo perdido do campo progressista com o povo:

— Meu partido, quando foi criado, tinha núcleo de categoria por bairro, por vila, por local de trabalho, por local de estudo. Era a sociedade civil organizada, no seu local de moradia, no seu local de trabalho, que fazia com a que a democracia pudesse vencer. Eu pergunto: o que nós fazemos hoje?

Dois anos atrás, em viagem também para discursar na ONU, Lula pactuou com Joe Biden, então à frente dos Estados Unidos, uma parceria pelo trabalho digno. Tanto o petista quanto o democrata reconheciam que seus partidos haviam perdido conexão com o eleitorado habitual, em razão da precarização do mercado de trabalho. Sindicatos e fábricas já não eram pontos de conscientização política nem de atração de votos. No Brasil, igrejas e quartéis foram, em grande parte, tomados pela oposição.

As manifestações contra abusos parlamentares ensinaram, contudo, que a disposição para a luta por direitos, se adormeceu, não morreu. Ativada por rara indignação virtual, materializou-se pela convocação certeira pela via da cultura, uma vocação do Brasil. A fagulha encontrou o pavio quando Paula Lavigne filmou o chamado de Caetano Veloso. Vieram Gilberto Gil, Chico Buarque, Djavan, Geraldo Azevedo, Ivan Lins, todos forjados na arte de bater de frente com absurdos. No novo tempo, a gente (ainda) se encontra, cantando na praça, fazendo pirraça. Pra nos socorrer. Pra sobreviver.

 

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