sábado, 27 de setembro de 2025

Bandeiras. Por Eduardo Affonso

O Globo

Manifestações provaram que a esquerda continua hábil em se achar dona de pautas que são de todos os democratas

Domingo, 21 de setembro, manifestações país afora. Há quem diga que demonstraram a força da esquerda — eu diria que provaram que a esquerda continua hábil em se achar dona de pautas que são de todos os democratas. Teria sido uma ótima oportunidade de unir o país —como nas Diretas Já, no Fora Collor, no ouro de Rebeca Andrade. Não deu — mas foi bonita a festa, pá: não é todo dia que se junta tanta gente contra a impunidade (lembrou a campanha da finada Ficha Limpa). E, ainda por cima, ouvindo Chico, Gil, Caetano e Djavan — vestidos de verde, amarelo, azul e branco. Copacabana estava colorida, esperançosa, embandeirada.

Havia inúmeras bandeiras da Palestina, país (ainda não oficial) atacado e quase totalmente destruído por Israel — uma nação democrática que luta pelo direito de existir e cujo inimigo não são os palestinos, mas os terroristas do Hamas. Não vi nenhuma bandeira da Ucrânia, país (oficial, reconhecido) invadido pela Rússia — autocracia com pretensões expansionistas. Quantos daqueles que se posicionavam pró-democracia reconheceriam meu direito de portar uma bandeira ucraniana na manifestação em que todos parecíamos defender os mesmos valores?

Havia também bandeiras do arco-íris — que, nos meus tempos de catecismo, era o símbolo da aliança entre o Criador e as criaturas que Ele tentou exterminar, dando um Format C: no planeta, com o dilúvio. Hoje ela expressa diversidade. Os que carregassem uma bandeira dessas na Palestina (ou em qualquer outro país muçulmano) receberiam acolhida similar à que eu teria se chegasse em Copacabana enrolado numa bandeira com a estrela de David.

A pauta da festa — rejeição à asquerosa PEC da Bandidagem e à oportunista anistia aos golpistas — não era do PT, mas do Brasil. E havia, em números similares, o rubro estandarte petista e o auriverde pendão da nossa terra. Este último, símbolo de que a direita havia se apropriado e que acabou de descartar — trocando as 27 estrelinhas esparramadas por 50 estrelonas em ordem unida, e a lúdica geometria do losango e do círculo por um listrado basicão. Poucos anos atrás, uma bandeira do Brasil numa festa do PT seria vaiada; graças à proverbial estupidez da direita, não mais.

Havia bandeiras do MST — esse povo que, depois de 16 anos de governo de esquerda, continua sem terra. E da UNE — orgulhosamente empunhadas por quem continua em posição vergonhosa do Pisa. Baseados eram fumados livremente, ainda na ilegalidade — o PT não cuidou da descriminalização das drogas. Aliás, os casais homoafetivos que circulavam de mãos dadas talvez não soubessem que o reconhecimento dos seus direitos se deu via STF, não pelo Congresso. Dos milhares de mulheres presentes (todas fartas da misoginia explícita de Bolsonaro, a maioria condescendente com as pequenas gafes, os ligeiros escorregões e os leves deslizes machistas de Lula), muitas já devem ter feito aborto em clínicas clandestinas; o tema da descriminalização não interessa ao PT, assim como não lhe interessam o ensino fundamental de qualidade, o saneamento básico universal, o Estado laico, a eutanásia...

Éramos milhares em Copacabana entoando Esse imenso, desmedido amor/Vai além de seja o que for, Cantando eu mando a tristeza embora, Talvez o mundo não seja pequeno/Nem seja a vida um fato consumado, Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome. Isso não é bandeira da esquerda, mas do humano.

Nenhum comentário: