domingo, 27 de outubro de 2019

Dorrit Harazim - O arco da memória

- O Globo

Queda do Muro de Berlim merece ser celebrada agora e sempre, sem reservas, como momento da história em que foi estupendo estar vivo

Hoje tem eleições presidenciais na vizinha Argentina. Coisa grande a ser acompanhada com lupa em Brasília e Washington, pelo FMI e em Pequim. Também tem a votação no Uruguai, onde a escolha do novo chefe da nação dirá se a década e meia de hegemonia da Frente Ampla de esquerda conseguirá se manter no poder. E tem eleições regionais na Turíngia.

E daí?

A Turíngia, estado federal da Alemanha fincado no centro geográfico do país, tem pouco mais de 2,1 milhões de habitantes. Ali se cultuam filhos da terra como Lutero, Goethe e Bach, castelos medievais e nostalgias de tempos melhores. A eleição deste domingo apontará se a região continuará a ser o único dos 16 estados da República Federativa Alemã ainda governado pelo partido Die Linke (A Esquerda), ou se o eleitor dará preferência à cada vez mais vitaminada extrema direita AfD (Alternativa para a Alemanha). Em tempos normais a votação sumiria no noticiário global. Exceto que o passado da Turíngia não é banal: foi ali que o partido nazista obteve a sua primeira vitória eleitoral 90 anos atrás.

Estamos às vésperas das comemorações pelos 30 anos da queda do Muro de Berlim, que a cidade começará a festejar no próximo dia 4 com eventos de semana inteira e apoteose no sábado 9 de novembro, data em que a muralha física da Guerra Fria começou a ruir. É nesse contexto que a eleição na Turíngia adquire simbolismo extra.

Passadas três décadas desde 1989, a história, o significado e o legado da Berlim partida durante 28 anos continuam a afetar o país inteiro e exigir revisão contínua. O Muro se soma ao Holocausto como parte essencial da memória coletiva e da complexa identidade alemã, tema central do recém-lançado “After the Berlin Wall: Memory and the Making of the New Germany, 1989 to Present”, da americana Hope M. Harrison, historiadora da George Washington University.

Sugestão para quem se sentir perdido na semana do aniversário, em meio à avalanche de material sobre essa debacle histórica que haverá de inundar livrarias, especiais de TV e noticiário contínuo: começar pelos escritos do diretor do Centro de Estudos Europeus na Universidade de Oxford, Timothy Garton Ash. O ensaísta e historiador inglês foi testemunha ocular privilegiada das “revoluções de veludo” que brotaram em cascata primeiro em Varsóvia, depois Budapeste, Praga e Berlim Oriental, desembocando no colapso do império soviético. Para sorte do leitor interessado, Garton Ash tem talento afiado para narrativas que misturam saber acadêmico e bom jornalismo — ele simplesmente não consegue ser tedioso. Pena que apenas duas de suas obras façam parte do catálogo nacional — “Nós, o Povo” (1990) e a coletânea “Os fatos são subersivos”(2011).

Semanas atrás Garton Ash publicou ensaio oportuno na “New York Review of Books” sobre a efeméride que se aproxima. Intitulado “Time for a New Liberation” (algo como É hora de uma nova libertação), o texto contém uma pergunta: o que deu errado? Ele relembra que em 1999, vésperas do novo milênio, o mundo celebrou o 10º aniversário de 1989 com sensação de triunfo e perspectiva de progresso mundial. Em 2009, por ocasião do ano 20 das revoluções de veludo, a Europa Central comemorava sua integração à União Europeia e à Otan, e a Hungria era descrita como uma “democracia consolidada”. Hoje, escreve o autor que revisitou os quatro países e captou seus lamentos, o primeiro-ministro autocrata Viktor Orbán, líder do partido de extrema direita Fidesz, em nada lembra o jovem liberal de antanho, bolsista da Fundação George Soros em Oxford. Na Polônia atual, o chefe do partido nacionalista Lei e Ordem Jarosław Kaczynski trata imigrantes como “parasitas” e “protozoários”. E na República Tcheca governada pelo oligarca e ex-informante da polícia secreta Andrej Babis, Garton Ash ouviu que “a democracia está sendo roubada de nós”.

É tentador procurar paralelos entre as massas espontâneas que hoje tomam as ruas em Beirute, Santiago do Chile, na Bolívia ou Equador. Ou entre as que elegem governantes de retórica simplista para enfrentar um mundo cada vez menos simples. Para Timothy Garton Ash, contudo, as sequelas da queda dos vários muros na Europa do Leste são singulares por se tratar de países que viveram 40 anos na órbita soviética. Foi repentino o acesso a liberdades individuais, à emigração livre para a idealizada Europa capitalista — em alguns países do antigo bloco socialista a emigração chegou a 27% da população. Na Alemanha, a hemorragia no território da antiga RDA, da qual a Turíngia foi parte, fez a população baixar a níveis de 1905. Sem falar na nova classe de oligarcas que repartiram o butim comunista.

Ainda assim a queda do Muro de Berlim merece ser celebrada agora e sempre, sem reservas, como momento da história em que foi estupendo estar vivo. Entre a miríade de eventos programados para a semana dos 30 anos haverá uma monumental instalação aérea sobre o Portão de Brandenburgo contendo 30 mil mensagens de residentes. Cada um escreverá o que deseja para o futuro.

Menos muros, barreiras, separações físicas do outro não seria má idéia. Só que o mundo parece já ter optado por enjaular a humanidade.

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