Ele tinha acabado de escrever um livro sobre a ascensão do presidente Jair Bolsonaro e a nova direita; a obra deve ser publicada nos próximos meses
Chico Otavio | O Globo
RIO - O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos tinha 27 anos quando publicou, em 1962, um pequeno ensaio denominado “Quem dará o golpe no Brasil?”. Ele alertava que, quando uma minoria dominante não vê mais o que fazer para manter o controle “nos quadros existentes e com as leis por ela própria estabelecidas”, cria as condições para uma “tentativa de violar e rasgar essas leis, instaurando-se, então, uma ditadura de novo tipo”, que assegure a permanência de sua dominação.
Com esse texto de apenas 52 páginas, Wanderley Guilherme entraria para os anais da Ciência Política brasileira como o primeiro pesquisador a antecipar o golpe civil-militar que derrubaria o governo de João Goulart dois anos depois.
Desde cedo, ele pavimentou uma carreira marcada pelos estudos sobre o acidentado processo democrático no Brasil e sua relação com a massa de eleitores. Eram objetos de sua pesquisa, por exemplo, os regimes militares na América Latina, os impasses da democracia na região e a formação dos movimentos sociais.
A explicação teoricamente mais refinada sobre o golpe de 1964 seria fornecida mais tarde por Wanderley Guilherme em sua tese de doutorado. "The calculus of conflict: impasse in Brazilian politics and crisis of 1964", apresentada à Universidade de Stanford (EUA) em 1979, na qual combinou pesquisa empírica com sofisticada análise teórica.
De acordo com o historiador Carlos Fico (UFRJ), dos estudos de Wanderley Guilherme emergiu o conceito de “paralisia decisória”, que o cientista político usaria outras vezes para explicar que, em situações de polarização política, os recursos de poder se dispersam entre atores radicalizados verificando-se, então, um colapso do sistema político, incapaz de tomar decisões sobre questões conflitantes.
Outro conceito importante, segundo o cientista político Christian Linch, foi o da “cidadania regulada”. No livro "Cidadania e Justiça", Wanderley Guilherme sustentou que a Era Vargas criou “uma cidadania para o povo que não existia” e que passava pela ocupação profissional e pela carteira de trabalho. Sendo assim, quem não “trabalhava” associado a algum um sindicato, “estava fora”, explicou Christian.
De origem humilde, jogou futebol profissional. Chegou a atuar no Vasco da Gama como profissional.
Fundador do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj, atual Iesp-Uerj), Wanderley era aposentado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde deu aula de democracia e teoria política por mais de duas décadas. Um ex-aluno, o jornalista e cientista político Fábio Vasconcellos, se recorda que o professor era uma voz sempre ponderada, mas que estimulava os alunos a pensar:
— Deixava no ar uma certa impressão não de um saber superior a qualquer um em sala, mas de que poderíamos mais, sempre mais.
Não se conformava com argumento meramente opinativo, baseado em acho. Me lembro que uma vez um aluno começou uma fala dizendo ‘eu acho que’. Ele interrompeu e elegantemente provocou o aluno: 'Fazemos ciência. Me traga evidências'. Enfim, assistir aula com ele, fui aluno na disciplina ‘Política Brasileira’, era incrível por essa coisas. Ele tinha uma habilidade para o raciocínio claro que impressionava. Um mestre!
A situação política da atualidade inquietava. Primeiro cientista político a perceber as mudanças no jogo político provocadas pelas redes sociais, Wanderley Guilherme tinha acabado de escrever um livro em que explicava a ascensão do presidente Jair Bolsonaro, a nova direita e a conexão entre o campo político e os eleitores. A obra deve ser publicada nos próximos meses, informou a Associação de Docentes da UFRJ (AdUFRJ), em seu site.
Considerado por muitos colegas como o último dos ensaístas clássicos do pensamento brasileiro e depois se tornou o decano da moderna ciência política brasileira, Wanderley Guilherme morreu na madrugada de sábado, aos 84 anos, de pneumonia, no Rio. Ele estava internado desde quinta-feira em um hospital carioca.
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