Por Mércio P. Gomes
Movido pelos ideais do movimento positivista, Rondon fez de sua vida uma luta pela aceitação dos índios como legítimos brasileiros.
Movido pelos ideais do movimento positivista, Rondon fez de sua vida uma luta pela aceitação dos índios como legítimos brasileiros.
Era um dia quente de verão no Rio de Janeiro, em janeiro de 1958, quando Rondon estava às portas da morte, e a família mandou chamar Darcy Ribeiro. O antropólogo fora seu jovem e brilhante escudeiro durante nove anos, de 1947 a 1956, no Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Juntos haviam concebido e construído o Museu do Índio e elaborado o projeto do Parque Indígena do Xingu, o qual transformou o indigenismo brasileiro - a partir daí, o Estado passou a reconhecer terras que eram alocadas aos índios como "territórios tribais". Com Darcy segurando suas mãos, Rondon rezou o credo do positivismo ortodoxo que aprendera, e ao qual fora fiel desde 1898: "[...] Creio[...] que, ao lado das forças egoístas, existem no coração do homem tesouros de amor que a vida em sociedade sublimará cada vez mais. Creio[...] que a missão dos intelectuais é, sobretudo, o preparo das massas humanas desfavorecidas, para que se elevem, para que se possam incorporar à Sociedade. Creio[...] que, sendo incompatíveis às vezes os interesses da Ordem com os do Progresso, cumpre tudo ser resolvido à luz do Amor [...]".
Cândido Mariano da Silva Rondon, nascido em Mimoso, ao sul de Cuiabá, descendente dos índios terena e bororo, não convivera com eles em sua infância nem na juventude. Provavelmente o fato de ter tido avós ou bisavós indígenas não teria sido razão de orgulho naqueles tempos e lugares. Na verdade, não havia motivos, digamos, emocionais para Rondon ser o defensor tão excepcional dos índios brasileiros. Aos 6 anos, já morava em Cuiabá e, aos 15, estava no Rio de Janeiro como aluno da Escola Militar. Foi aí que encontrou sentido em sua vida ao abraçar o positivismo como base filosófica e como princípio de fé. Pois a doutrina do positivismo religioso, criado por Auguste Comte no século 19 e instituída no Brasil pouco antes da proclamação da República, exortava como sua máxima virtude "Viver para outrem!", como um mandamento supremo da religião da humanidade.
No Brasil, a República aconteceu sem revolução, sem ao menos participação vívida da população. Entretanto, para aqueles que lutaram por ela ao longo de duas décadas, que nela projetaram a redenção do povo brasileiro, a República veio carregada de esperanças, de promessas de virtude, de compromissos transcendentais. Para os positivistas, ela chegou por razão histórica, pelo princípio da ordem das coisas.
Na Assembleia Constituinte de 1890-91, os positivistas apresentaram uma proposta inovadora para o federalismo brasileiro, pelo qual as terras indígenas seriam reconhecidas como "Estados autóctones americanos", diferentes dos "estados ocidentais", as províncias tradicionais do ex-Império do Brasil. A proposta dizia que as áreas autóctones teriam fronteiras reconhecidas, e por elas só se poderia passar com licença dos próprios índios. Seriam nações autônomas.
Assim, quando organizou o Serviço de Proteção aos Índios, em 1910, Rondon não somente tinha base filosófica do que deveria fazer como já havia experimentado e aplicado esses ensinamentos em sua lida com povos indígenas sem relacionamento com a sociedade. Desde 1890, Rondon passara a viver praticamente nos sertões do Mato Grosso (que, naquele tempo, com-preendia os atuais estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia) espichando fios de telégrafo e abrindo estradas de rodagem, cumprindo a tarefa estratégica de integrar o Brasil. Acompanhado de estudiosos, o sertanista abriu à ciência um campo desconhecido de pesquisas e descobertas, mapeou rios e relevos, refez os traços das fronteiras geopolíticas.
Quando atacado por um grupo de nhambiquaras, Rondon proibiu que seus soldados revidassem ao ataque e os fez recuar, cumprindo a sina de "morrer se preciso for, matar nunca". Essa máxima virou o dístico do SPI e o cálice simbólico do indigenismo brasileiro ao longo dos anos. Muitos morreram nas mãos dos índios como se fossem mártires da humanidade.
Rondon conviveu com diversos povos indígenas, entre eles os bororos, terenas, cadiuéus, parecis, nhambiquaras, umutinas, no velho Mato Grosso, mas também com povos do Amapá, do Pará, do Amazonas e de Roraima. Viveu quatro anos em Letícia, na Colômbia, pacificando grave disputa territorial entre esse país e o Peru. Depois, a partir de 1938, renovou o SPI para consolidar sua obra indigenista. Chegou a ser indicado duas vezes para o Prêmio Nobel da Paz, uma delas por carta de Albert Einstein quando o cientista estivera no Brasil. Nenhum outro brasileiro teve vida tão intensa na labuta, tão dedicada a causas e tão fecunda nas realizações. Seus feitos são extraordinários, e se hoje não parecem visíveis é porque estão incorporados à ordem das coisas.
Cândido Mariano da Silva Rondon, nascido em Mimoso, ao sul de Cuiabá, descendente dos índios terena e bororo, não convivera com eles em sua infância nem na juventude. Provavelmente o fato de ter tido avós ou bisavós indígenas não teria sido razão de orgulho naqueles tempos e lugares. Na verdade, não havia motivos, digamos, emocionais para Rondon ser o defensor tão excepcional dos índios brasileiros. Aos 6 anos, já morava em Cuiabá e, aos 15, estava no Rio de Janeiro como aluno da Escola Militar. Foi aí que encontrou sentido em sua vida ao abraçar o positivismo como base filosófica e como princípio de fé. Pois a doutrina do positivismo religioso, criado por Auguste Comte no século 19 e instituída no Brasil pouco antes da proclamação da República, exortava como sua máxima virtude "Viver para outrem!", como um mandamento supremo da religião da humanidade.
No Brasil, a República aconteceu sem revolução, sem ao menos participação vívida da população. Entretanto, para aqueles que lutaram por ela ao longo de duas décadas, que nela projetaram a redenção do povo brasileiro, a República veio carregada de esperanças, de promessas de virtude, de compromissos transcendentais. Para os positivistas, ela chegou por razão histórica, pelo princípio da ordem das coisas.
Na Assembleia Constituinte de 1890-91, os positivistas apresentaram uma proposta inovadora para o federalismo brasileiro, pelo qual as terras indígenas seriam reconhecidas como "Estados autóctones americanos", diferentes dos "estados ocidentais", as províncias tradicionais do ex-Império do Brasil. A proposta dizia que as áreas autóctones teriam fronteiras reconhecidas, e por elas só se poderia passar com licença dos próprios índios. Seriam nações autônomas.
Assim, quando organizou o Serviço de Proteção aos Índios, em 1910, Rondon não somente tinha base filosófica do que deveria fazer como já havia experimentado e aplicado esses ensinamentos em sua lida com povos indígenas sem relacionamento com a sociedade. Desde 1890, Rondon passara a viver praticamente nos sertões do Mato Grosso (que, naquele tempo, com-preendia os atuais estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia) espichando fios de telégrafo e abrindo estradas de rodagem, cumprindo a tarefa estratégica de integrar o Brasil. Acompanhado de estudiosos, o sertanista abriu à ciência um campo desconhecido de pesquisas e descobertas, mapeou rios e relevos, refez os traços das fronteiras geopolíticas.
Quando atacado por um grupo de nhambiquaras, Rondon proibiu que seus soldados revidassem ao ataque e os fez recuar, cumprindo a sina de "morrer se preciso for, matar nunca". Essa máxima virou o dístico do SPI e o cálice simbólico do indigenismo brasileiro ao longo dos anos. Muitos morreram nas mãos dos índios como se fossem mártires da humanidade.
Rondon conviveu com diversos povos indígenas, entre eles os bororos, terenas, cadiuéus, parecis, nhambiquaras, umutinas, no velho Mato Grosso, mas também com povos do Amapá, do Pará, do Amazonas e de Roraima. Viveu quatro anos em Letícia, na Colômbia, pacificando grave disputa territorial entre esse país e o Peru. Depois, a partir de 1938, renovou o SPI para consolidar sua obra indigenista. Chegou a ser indicado duas vezes para o Prêmio Nobel da Paz, uma delas por carta de Albert Einstein quando o cientista estivera no Brasil. Nenhum outro brasileiro teve vida tão intensa na labuta, tão dedicada a causas e tão fecunda nas realizações. Seus feitos são extraordinários, e se hoje não parecem visíveis é porque estão incorporados à ordem das coisas.
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