quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Os dois 11 de setembro -- Raimundo Santos

[Texto publicado no site espanhol a Insignia em setembreo de 2001]

Os dois 11 de setembro tiveram alvos emblemáticos: o do Chile, de 1973, interrompeu a "via política" ao socialismo, considerada por Allende, pelo seu método democrático e pluralismo, uma alternativa ao modelo de 1917. Ela lembrava a Engels, falando, no final do século XIX, de uma "revolução da maioria" e da democratização política como o único caminho socialista ali onde, como na Alemanha, revoluções econômicas modernizaram suas sociedades de modo conservador. Interpretando a nova realidade do "capitalismo organizado" do pós-1929, Gramsci relançou a hipótese como uma estratégia de "guerra de posições", um árduo processo através do qual se reorganizaria a hegemonia da velha sociedade, como uma "revolução intelectual e moral". Em 1958, após o fracasso das tentativas de renovação do socialismo (XX Congresso do PCUS, Checoslováquia, Hungria, Polônia), Togliatti definiria o aprofundamento das liberdades democráticas como o substrato de um socialismo de reformas estruturais progressivas.

Aquele 11 de setembro assassinou Allende, mas não o movimento que ele expressava. A derrota da "via chilena", por não ter obtido uma força política de maioria, propiciou lições para Enrico Berlinguer formular as suas teses da democracia como "valor universal" - para vigorar antes e depois das transformações socialistas -, e a do "compromisso histórico" das esquerdas com outras culturas políticas, não apenas para apoiarem ações de poder, mas para aportarem valores à renovação da sociedade. Depois, as proposições berlinguerianas levariam à idéia do caráter falibilístico do socialismo, da alternância no poder, e a se repensar as frentes democráticas como novas formas-partido, hoje indispensáveis para a política e o governar neste mundo da globalização.

O 11 de setembro de agora veio para negar o valor da política como tal, atingindo a esquerda que, desde o fim do comunismo, vinha procurando se reanimar com as possibilidades de coalizões pluriclassistas, principalmente com os novos governos social-democratas da Europa, contextos nos quais se lutava contra a tese da ingovernabilidade da globalização. Mas, "num balanço do horror", no dizer do comunista francês Robert Hue, os atentados contra os EUA trouxeram como resultado o "formidável engajamento num sentido positivo pela humanidade". Esse sentimento, que se difundiu em solidariedade aos EUA e para impedir a retaliação americana sem freios, também virá dar novo andamento à idéia de que a globalização pode ser democratizada, evitando-se que ela acirre mazelas sociais e o abandono de povos inteiros, como os da África que precisam ser incorporados, sob responsabilidade mundial.

Por meios diferentes aos da polarização da Guerra Fria, voltam o método das soluções negociadas. Sem a "lógica de guerra", o comprometimento universal com a luta contra o terrorismo pode vir a aumentar a responsabilidade de todos pelo mundo. A política terminará se impondo por sobre a cruzada do Bem contra o Mal que Bush quer impor com a ação militar no Afeganistão. São intensas as articulações entre países da Europa. Eles operam como aliados dos EUA, alimentam discussões e em boa hora servem de ponte do mundo árabe-mulçumano com o Ocidente, algumas de suas lideranças indo até lá para tirá-lo do isolamento. Países acossados pela fome, guerras e por ditaduras são chamados a falar no cenário internacional, com apoio da Europa. Foram importantíssimas as visitas de Arafat à Inglaterra e ao Papa. Agora a pouco, Arafat reuniu-se com Simon Peres em encontro da União Européia, em Madri. Todos esses movimentos trabalham a favor da idéia de uma Conferência Mundial de Paz no Oriente Médio, como propôs M. D'Alema, ao participar de uma delegação européia em visita a países árabes.

No Brasil, esse movimento de retomada da política de esquerda e centro-esquerda nas questões internacionais tem larga margem para se afirmar e pode ajudar muito aos povos oprimidos e aos países distantes, hoje sob a enorme tensão gerada pelos atentados contra os EUA. A nossa circunstância é boa para se trabalhar a favor da paz e para que se ponha fim às mortes e destruições no Afeganistão. Podemos mobilizar o valor do que somos - uma democracia, riqueza cultural, importância econômica e grande liderança latino-americana. É o que demonstra a repercussão do discurso do Presidente da República na França. Essa relevância marcará a participação do Brasil na reunião da ONU desses dias. Essa ação política do Brasil terá mais eficácia se a ela se somarem movimentos da sociedade, especialmente de opinião pública. Neste país, eles já tiveram muito peso, toda vez que surgiram em meio a um clima intelectual e político que ajudava a converter aqueles valores nacionais em apoio a causas gerais, um clima sempre animado por uma cultura política de esquerda de grande generosidade e comprometimento com as "soluções positivas" e a defesa da paz e da democracia.

Raimundo Santos é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

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