Eram centenas de pessoas, de setecentas a oitocentas. Se concentraram em frente à Faculdade de Direito. Tudo começou pacificamente e a marcha se direcionou ao coração financeiro, comercial e turístico da cidade. Em determinado instante, um grupo de manifestantes mascarados começou a puxar um coro próprio. Usavam mochilas e roupas negras. Sacaram aerossois e começaram a pichar de amarelo as portas fechadas do comércio e agências de bancos. Foi a hora que a polícia começou a atuar e o grupo se dispersou. Cerca de vinte manifestantes entraram em uma rua lateral e se dividiram em grupos de cinco. Nas mochilas, carregavam pedras, paus, máscaras antigases, aerossóis de tinta. Destruíram um caixa automático e quebraram os vidros de uma igreja. Os manifestantes identificam-se politicamente como simpáticos ao anarquismo.
A cena toda é familiar aos brasileiros, mas não aconteceu em junho e nem no Brasil. A descrição faz parte de um inquérito penal aberto em Montevidéu, contra dois anarquistas presos na ocasião. A policia uruguaia estava infiltrada entre os manifestantes que ocuparam a avenida 18 de Julho há duas semanas e produziu o relato, manchete da terça-feira do jornal uruguaio "El Día". Foi a segunda manifestação violenta na capital uruguaia em menos de um mês. No dia 25, em um ato contra mineradoras, também houve enfrentamento com a polícia. Nenhum dos anarquistas detidos era uruguaio: um era argentino e o outro, peruano.
Deve-se buscar dentro do Brasil as razões que explicam a revolta de junho. Mas há um padrão que não começou com o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo e não termina com a confusão na 18 de Julho. "Até a década passada, o padrão na América Latina era de radicalização moderada, com três fontes básicas de origem dos conflitos: trabalhista, ambiental e de moradores. O demandado sempre era o Estado. O modelo hoje é outro", disse o sociólogo de origem boliviana Fernando Calderón, da Universidade de San Martín, na Argentina, e consultor de um centro de pesquisas do PNUD que monitora os conflitos sociais na América Latina.
Mudou o padrão de demandas no continente
Em relação às manifestações da segunda década do século passado, os únicos traços que unem quem está nas ruas são a juventude, o uso das redes sociais como catalisador e o Estado que permanece sendo o alvo. Não há predomínio de classe social ou fronteira ideológica. Não há como catalogar os protestos por demandas.
Calderón marca as manifestações estudantis que sacudiram o Chile, em 2011, como o início da nova onda. Este ano disputam-se eleições no país e, como aconteceu em todas as eleições desde a redemocratização do país, a polarização será entre a frente de centro-esquerda de socialistas, democratas-cristãos e comunistas, de um lado, e a direita que se identifica com a política econômica de Pinochet, do outro. "Mas é falso pensar que os protestos no Chile foram inconsequentes. Eles pautaram a agenda das duas frentes. A educação está no centro do debate público lá", afirmou.
O traço distintivo do Brasil, segundo a visão distante de Calderón, é o componente político que serviu de combustível aos protestos. " É interessante como no Brasil predomina uma crítica moral e uma demanda ética nas manifestações. Mais do que em qualquer outro país, no Brasil há uma desconfiança do sistema institucional e um baixo apreço à democracia representativa", disse.
É de uma constatação como essa que o pesquisador do Cebrap e da Unicamp Marcos Nobre partiu em seu trabalho " Choque de Democracia-Razões da Revolta", ensaio transformado em "e-book" pela Companhia das Letras, apresentado por ele em um debate na Flip, o festival cultural de Paraty. Na visão dele, a chave para a crise política brasileira está no que chama de "blindagem" de Congresso e governos estaduais. "Ruiu a certeza de que a melhoria das condições de vida é suficiente para garantir apoio político, de que a situação econômica determina completamente a decisão política", escreveu Nobre.
Para o filósofo, desde a época da Constituinte, nos anos 80, se desenhava uma frente congressual para brecar a pressão das ruas dentro das instituições políticas. O chamado "Centrão", em sua opinião, foi o primeiro ensaio. O sistema ganhou um outro patamar durante o governo Fernando Henrique e atingiu seu ápice após a reeleição de Lula em 2006, quando se consolidou a aliança entre o PT e o PMDB. Com o patrocínio do Palácio do Planalto, o sistema atingiu a blindagem total, em que a oposição em termos práticos inexiste e as polarizações na sociedade deixam de se refletir nas instituições da democracia representativa, como o Congresso. Em termos econômicos, as duas últimas décadas foram marcadas pela inclusão. Na esfera política, o Brasil estaria em uma situação análoga a do início do século 20, pré-revolução de 1930.
Em um sistema político assim fechado como o descrito por Nobre, monta-se um circuito de dominação: O Executivo se nutre do apoio de oligarcas regionais e congressuais, com quem precisa barganhar de tempos em tempos, e o retribui bancando seus apoiadores em momentos em que estes estão fragilizados. Depois do vendaval de junho, começa a ficar claro para onde o pêndulo do poder se inclinou.
Quando estourou a crise, o primeiro movimento de Dilma foi tentar direcionar a pressão para o Legislativo, com a fracassada sugestão de um plebiscito para uma reforma política que aumentaria o controle das bases pelas cúpulas partidárias. O troco já está vindo, como prova a votação na Câmara desta terça-feira, que aprovou em segundo turno a proposta que torna o Orçamento impositivo para emendas parlamentares. No dia 7 de setembro, uma nova onda de protestos deve se armar no horizonte brasileiro. É possível que a fatura se torne mais alta.
Fonte: Valor Econômico
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