sábado, 10 de janeiro de 2015

A liberdade de expressão de luto

Daniela Fernandes – Valor Econômico

Na imprensa francesa, o semanário satírico "Charles Hebdo" pode ser considerado o número 1 na categoria de estilo provocador. A revista, conhecida na França por sua ironia feroz e pela audácia de suas charges, criou numerosas polêmicas, as mais recentes envolvendo o islã. Como consequência, sofreu, nos últimos anos, várias ameaças, processos judiciais e também um ataque incendiário.

O tiroteio, na quarta-feira, em sua sede em Paris, qualificado de "atentado terrorista" pelo governo da França, deixou 12 mortos, entre eles o diretor da publicação e três outros cartunistas célebres no país. "A redação do jornal era ameaçada havia anos pelo obscurantismo", afirmou o presidente francês, François Hollande, que decretou dia de luto nacional na quinta.

"Charlie Hebdo" utiliza amplamente ilustrações para comentar a atualidade e foram justamente as charges que fizeram sua notoriedade na área. A revista refletiria, segundo Stéphane Charbonnier, conhecido como Charb, diretor e também caricaturista morto no tiroteio, "todas as correntes da esquerda, inclusive os abstencionistas".

Fundada em 1969, com o nome de "Hara-Kiri Hebdo", ela foi proibida pelo governo francês logo no ano seguinte após ironizar a morte do general Charles de Gaulle, ex-presidente e considerado herói nacional, com o título "Baile trágico em Colombey (onde De Gaulle morreu): um morto", que fazia alusão a um incêndio ocorrido em uma discoteca alguns dias antes, tragédia que matou 150 pessoas.

Para driblar a proibição do governo, a equipe decidiu mudar o nome da publicação para "Charlie Hebdo". Para alguns, seria uma alusão ao general. Mas o nome seria devido ao famoso personagem americano de histórias em quadrinhos Charlie Brown, cujas tirinhas passaram a integrar a edição.

A revista, no entanto, deixou de existir em 1981 por falta de leitores, voltando à ativa em 1992, com os mesmos nomes prestigiosos da década de 70, como os desenhistas Jean Cabu, 76, e Georges Wolinski, 80, também mortos no tiroteio nesta semana.

Irreverente, "Charlie Hebdo" tem entre seus temas prediletos críticas à extrema-direita e ao fundamentalismo religioso, seja islâmico, católico ou judeu.

A principal polêmica ocorreu em 2006, quando "Charlie Hebdo" decidiu lançar um "amplo debate sobre a liberdade de expressão", ao publicar 12 caricaturas do profeta Maomé, as mesmas que haviam circulado meses antes no jornal dinamarquês "Jyllands-Posten" e provocado violentos protestos no mundo muçulmano. Na capa dessa edição, um desenho mostrava o profeta chorando e reclamando dos integristas.

Nessa época, a tiragem do semanário era de 140 mil exemplares. A edição com as caricaturas de Maomé vendeu 400 mil números. A revista ganhou os processos movidos por organizações muçulmanas, mas se tornou alvo de ameaças recorrentes.

Em 2011, o semanário relançou a polêmica ao publicar um número especial batizado "Charia Hebdo", em que o profeta era o "editor-chefe convidado" e aparecia em um desenho na capa dizendo que "quem não morresse de rir seria açoitado". A sede da publicação foi incendiada por coquetéis molotov na véspera da chegada dessa edição às bancas.

A partir disso, seu diretor, Charb, passou a ter escolta policial permanente. O policial que assegurava sua proteção também morreu no tiroteio na quarta-feira. A redação mudou de endereço e foi para um local com segurança reforçada, com códigos nas portas, o que não impediu o ataque ontem, que matou 8 dos cerca de 30 jornalistas.

O site do jornal também foi pirateado várias vezes. Em 2012, "Charlie Hebdo" publicou, na época do lançamento de um controverso filme sobre o islã, novas caricaturas de Maomé, inclusive nu, que geraram novas controvérsias.

A tiragem estava caindo nos últimos anos e seria de cerca de 48 mil exemplares. Alguns estimam que a morte de membros ilustres e históricos da publicação (oito jornalistas morreram) levará ao fim da "Charlie Hebdo".

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