• Corte de benefícios sociais poderá gerar tensão
- Valor Econômico
O kirchnerismo governa a Argentina há mais de 12 anos. O chavismo governa a Venezuela há mais de 16 anos. Ambos estão para ser derrotados nas urnas. Muitas lições e conclusões podem ser tiradas, mas é preciso cautela com avaliações de fim de um ciclo. As prováveis derrotas eleitorais não significam que desaparecerá a demanda social subjacente que manteve esses dois movimentos populistas no poder. Essa demanda pode até ganhar força. E novos governos terão de se adaptar a isso.
A Argentina escolherá neste domingo o seu novo presidente, após o reinado K, de Néstor (2003-07) e Cristina Kirchner (2007-15). Pesquisas de intenção de voto mais recentes indicavam vitória do oposicionista Mauricio Macri, um liberal. Ele tinha de oito a dez pontos de vantagem sobre o governista Daniel Scioli.
A Venezuela votará no dia 6 de dezembro para a Assembleia Nacional (o Congresso local). A pesquisa mais recente, desta semana, do instituto Datanálisis aponta vitória da oposição com 62,3%, contra apenas 28,2% do chavismo. Se isso se confirmar, o movimento criado por Hugo Chávez (morto em 2013) terá sua maior derrota eleitoral e perderá, pela primeira vez, a maioria no Legislativo. Esse resultado abriria caminho para um referendo pelo afastamento do presidente Nicolás Maduro no ano que vem.
Kirchnerismo e chavismo têm muitos elementos comuns, mas também diferenças importantes.
Ambos chegaram ao poder em momentos críticos. Néstor foi eleito em meio à maior crise econômica da história da Argentina. Chávez foi eleito quando o petróleo, que responde por mais de 90% das exportações da Venezuela, custava cerca de US$ 10 o barril, o que, ajustado pela inflação, é o menor preço desde a Segunda Guerra até hoje.
Ambos foram eleitos também num momento em que crescia a demanda por uma melhor distribuição de renda e maior justiça social no continente mais desigual do mundo. Essa onda ajudou o PT a vencer as eleições de 2002 no Brasil. Todos os países da região, em maior ou menor escala, ampliaram o gasto social com programas como o Bolsa Família.
Kirchnerismo e chavismo se mostraram profundamente anticapitalistas. Não é à toa que o mercado de ações praticamente desapareceu nos dois países. Chávez declarava abertamente perseguir um modelo socialista. Kirchner era ambíguo, mas o atual ministro das Finanças argentino, Axel Kicillof, se diz marxista. A história do século XX mostra que o socialismo, uma ideia aparentemente simpática, na prática acaba em desastre econômico e autoritarismo político. A Venezuela não vai reescrever essa história.
Tanto na Argentina como na Venezuela houve uma degradação das instituições, que se curvaram ao peso de um hiperpresidencialismo, com forte concentração de poderes na Presidência. Em entrevista a Marli Olmos, ontem no Valor, o filósofo argentino Santiago Kovadloff destaca como uma das principais tarefas do novo governo reconstruir as instituições no país.
Nos dois países, assim como em quase toda a região, o surto de benefícios sociais foi em parte bancado por um aumento excepcional da arrecadação pública, ligado ao superciclo das commodities. Quando esse ciclo acabou, os déficits fiscais explodiram nos países com maior desequilíbrio nas contas ou com maior dificuldade de fazer ajustes. É o caso de Argentina e Venezuela, mas também do Brasil.
Ou seja, esses benefícios foram em parte custeados por receitas extraordinárias, e não por uma expansão baseada na alta da produtividade e da competitividade, obtida por meio de melhor educação, mais investimentos e inovação.
Na Argentina, os Kirchner realizaram uma ampliação sem precedentes da carga tributária, que passou de 21% para 32,5% do PIB em apenas nove anos. Isso gerou um enorme confronto entre o kirchnerismo e setores importantes do país, como o agronegócio.
Chávez não precisou elevar nem cobrar impostos extras. A espetacular alta da receita com o petróleo financiou o gasto público. Segundo estimativa feita pelo Valor, a Venezuela teve, entre 1999 e 2012, uma receita com petróleo apenas um pouco menor do que a soma dos 40 anos anteriores. Esse dinheiro foi torrado sem que o país melhorasse a sua infraestrutura e a capacitação da mão de obra, sem que investisse em outros setores ou atraísse mais empresas estrangeiras. Pelo contrário, hoje a Venezuela depende mais do que nunca do petróleo.
Neste final de 2015, chavismo e kirchnerismo deixam como legado inflação alta (no caso da Venezuela, descontrolada, com estimativa de até 170% ao ano), recessão, déficit fiscal, reservas internacionais baixas, falta de transparência na gestão pública, piora nos indicadores sociais, isolamento internacional.
Mas chavismo e kirchnerismo foram a resposta equivocada a uma demanda crescente por mais e melhores gastos sociais, especialmente em educação e saúde. E essas demandas não dão sinais de que vão desaparecer.
Um indicador curioso disso vem da própria Venezuela, onde a aprovação ao presidente Maduro, segundo a pesquisa Datanálisis, é de apenas 20%, mas a aprovação a Chávez é de 58%. Esse dado possivelmente reflete a aprovação a políticas sociais chavistas que serão difíceis de reverter. O oposicionista Macri, na Argentina, prometeu manter boa parte dos programas sociais do kirchnerismo, como fez Aécio Neves na campanha presidencial brasileira do ano passado.
Milhões de pessoas que ascenderam socialmente nos últimos 15 anos na região - a chamada nova classe média - já enfrentam a ameaça de empobrecimento, devido ao desemprego, à inflação e à desvalorização, que reduzem a renda e o poder de compra. Cortar benefícios sociais será particularmente difícil nesse contexto e pode gerar tensão. É o que parece estar ocorrendo com a ocupação de escolas no Estado de São Paulo, em protesto contra a reformulação da educação proposta pelo governo. Junto com a ascensão social houve um processo de empoderamento.
O desafio, assim, será ajustar os gastos com esses benefícios à nova realidade da arrecadação, pelo menos no curto prazo. Não será fácil para ninguém.
Macri terá um desafio extra. Os dois presidentes não peronistas após a redemocratização não concluíram seus mandatos. Raúl Alfonsín renunciou cinco meses antes do fim de seu mandato. Fernando de la Rúa renunciou em 2001, no meio do mandato.
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