• Aqui temos, desde sempre, um país viciado em conluios e conchavos entre o poder econômico e a classe politica
- Valor Econômico
Desde a crise dos "sub-primes" e o desaparecimento do Lehman Brothers em 2008, a predominância do "laissez faire, laissez passer" (ou neoliberalismo) começou a ser questionada. O abalo financeiro funcionou de alerta aos riscos do não intervencionismo e levou alguns economistas americanos e europeus a repensarem o modelo de capitalismo predominante no pós queda do muro de Berlim. Passou-se a apontar para o aumento da desigualdade e a associá-lo à deterioração da democracia. Esta já não conseguiria funcionar em sua plenitude pelo empoderamento político da elite empresarial e financeira.
Joseph Stiglitz foi um dos primeiros a chamar a atenção para o aumento da desigualdade nos Estados Unidos, consequência do estreito relacionamento dos grandes grupos econômicos com a classe política representada no Congresso e no poder Executivo. Thomas Piketty aprofundou o debate ao mostrar que o mundo vive período de altos níveis de concentração de renda, só comparável ao estado de enriquecimento da elite no início do século XX, antes que as duas guerras tivessem achatado a diferença entre pobres e ricos.
Outros embarcaram nos mesmos temas. Luigi Zingales, por exemplo, decidiu que o capitalismo precisa ser salvo dos capitalistas, a partir da mesma constatação de Stiglitz de que predomina hoje nos Estados Unidos o capitalismo de compadrio, ou de conluio, aquele que se alimenta das relações espúrias e interesseiras entre os grandes empresários e os detentores do poder político. São todas observações relacionadas à realidade dos países desenvolvidos que, por similaridade dos personagens envolvidos, acabam sendo transportadas sem maiores diferenciações para a análise dos fatos em países como o Brasil.
Aqui, por defeito de fabricação nos primórdios da colonização, temos desde sempre um país viciado em conluios e conchavos entre o poder econômico e a classe política, coniventes em seus interesses que confundem o público com o privado. Não resultou isso de um processo recente de aumento da concentração de renda, como identificou Piketty na França e em outros países desenvolvidos.
Aqui, a renda sempre foi concentrada, a desigualdade sempre foi elevada e a política institucionalizou-se a partir da distribuição de benefícios e de favores aos segmentos empresariais que, em troca, sempre souberam retribuir com desenvoltura contributiva.
Os privilegiados acostumaram-se a gravitar em torno de oligarcas e ditadores, comandantes de governos que se sustentaram justamente no crescente poder da elite econômica, expandido pelas políticas de achatamento salarial, de fechamento às importações, dos incentivos fiscais fartamente distribuídos sob diversas formas por anos a fio, da inflação elevada, do crédito mantido artificialmente com juro baixo, enfim...
Os fatos responsáveis pelo modus operandi daquela longeva engrenagem são do conhecimento de todos. Têm sido largamente descritos por historiadores e estudados por sociólogos e cientistas políticos, mas raramente considerados nas avaliações dos economistas brasileiros. Simplesmente, parece ser mais fácil desenvolver teorias sobre o que se passa aqui valendo-se de considerações sobre causas e efeitos que condizem com outras realidades.
O entendimento do quadro torna-se hoje, sem dúvida, difícil no clima de barata voadora que faz da seara política terra de ninguém. Some-se a isso a surpreendente prisão de legítimos representantes da elite e os inusitados protestos populares, gerais ou setoriais. Há algo de novo que não está sendo propriamente compreendido, talvez por ser ainda curto este período contínuo de democracia em que se vive (apenas 30 em 515 anos), o mais longo da história do país. Isso gera inconformismos com a nova feição da sociedade.
Como conviver democraticamente com o protesto legítimo de estudantes das escolas estaduais de São Paulo? O governador Geraldo Alckmin cometeu o mesmo erro do Palácio do Planalto que em junho de 2013 não conseguiu entender a mobilização do povo nas ruas. O maior acesso à informação, a melhoria da renda das classes mais baixas, a vontade de ser incluído e a ambição por uma vida melhor colocam o povo brasileiro na condição de motor das mudanças.
Historicamente, os sistemas políticos mudam quando a população se mobiliza em defesa dos avanços sociais e institucionais. Neste século XXI, a força do capitalismo tem contribuído para o anseio de mudança nos países em desenvolvimento. Nada fala mais alto do que o efeito de demonstração, ou seja, almejar uma vida tão boa quanto a que nos apresentam as imagens de conforto e de sucesso capturadas na internet. Isso é da essência do capitalismo.
A consciência de cidadania reforça a democracia e apura a preocupação dos eleitores com a representatividade política. Levado à exponencial, viabiliza uma massa crítica com poder de eliminar do cenário a danosa prática do capitalismo de compadrio enraizada por aqui desde que o país foi dividido em capitanias hereditárias.
O sociólogo britânico Thomas Humphrey Marshall identificou três aspectos no processo de desenvolvimento da cidadania no final do século XIX: o cívico, representado pela liberdade individual; o político, relacionado ao direito de participação e o social, representado pelo direito de acesso à fatia completa do patrimônio social da herança de um país. No fim do século XIX, o Brasil engatinhava na industrialização induzida por benefícios governamentais, às custas de uma sociedade em sua grande parte empobrecida e alijada do desenvolvimento. Os aspectos identificados por T.H. Marshall para a formação da cidadania parecem surgir só agora no país, com um século de atraso.
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