• Com Cunha e Temer, PMDB reinventa seu próprio pecado
- Valor Econômico
O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), move-se pela estratégia do fato consumado. É assim que monta o tabuleiro para que a presidente Dilma Rousseff caia antes. A decisão de levar a comissão do impeachment a voto fechado é parte da realidade que Cunha pretende criar para que todas as reações ao impeachment pareçam nadar contra uma irrefreável corrente.
Não parecia haver dúvidas de que a votação da comissão do impeachment, se secreta, acabaria judicializada. Duas semanas atrás, quando a prisão do senador Delcídio Amaral (PT-MS) teve que ser referendada pelo Legislativo, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Edson Fachin, manifestou-se favoravelmente à "indicação nominal do voto dos representantes do povo" em situações que a Constituição não preveja o contrário.
Modificado em 2013 para abrir a votação de perda de mandato parlamentar, o texto constitucional manteve o voto fechado apenas para a escolha do Procurador-Geral da República, ministros de tribunais, chefes de missões diplomáticas, presidente e diretores do Banco Central.
Ao se insurgir tão flagrantemente contra a Constituição, o presidente da Câmara buscou dar guarida aos parlamentares que querem derrubar a presidente sem deixar o governo. Mostrou-se um homem de partido, tanto quanto o missivista da semana, Michel Temer, que mencionou duas vezes sua condição de presidente pemedebista desprestigiado pelas tentativas de Dilma de dividir a legenda.
Aliados desde sempre, Temer e Cunha ganharam, neste mandato, um inimigo comum - o núcleo fluminense do PMDB, transformado em interlocutor preferencial da presidente no partido. A destituição do líder do PMDB, o deputado Leonardo Picciani (RJ), é o mais recente dos frutos desta aliança. O vice-presidente, que ontem não se furtou a defender a legitimidade da votação da comissão do impeachment, resumiu a ambição de sua aliança com o presidente da Câmara na carta dirigida à Dilma: "Passados estes momentos críticos, tenho certeza de que o País terá tranquilidade para crescer e consolidar as conquistas sociais".
No inventário de erros da gestão Dilma Rousseff há de ter lugar de honra sua condição de madrinha desse indissolúvel casamento entre os dois primeiros homens da linha sucessória de seu mandato. A presidente tenta de se ancorar no terceiro, Renan Calheiros (PMDB-AL), e conta com a ajuda do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que pediu, pela quarta vez, a prorrogação por mais 60 dias, das investigações sobre o suposto envolvimento do senador na Lava-jato.
À Câmara dos deputados compete afastar a presidente do cargo. É o Senado, porém, que pode vir a destituí-la. Mas na estratégia do fato consumado com a qual o presidente da Câmara dos Deputados pretende colocar nas ruínas da história governadores, juristas ou movimentos sociais que se insurgirem contra o impeachment, ao presidente do Senado não restaria outra alternativa senão referendar a decisão da Câmara.
A despeito da determinação de Eduardo Cunha, ainda são muitos os empecilhos à consumação dos fatos. Há de se despedalar, por exemplo, os decretos de crédito suplementar, sem autorização do Congresso, que foram assinados por Temer no exercício da Presidência. Impõe-se ainda conter a afobação daqueles que aderiram ao impeachment quando o bonde ainda estava vazio.
O exemplo mais eloquente é José Serra (PSDB-SP). Num dia o senador paulista diz abertamente que fará tudo o que for possível para ajudar Temer. No outro, o senador Aécio Neves (PSDB-MG) critica, por "fisiológica", a carta dirigida por Temer à presidente da República. O PSDB escancara suas divisões num momento em que Delcídio aparece, para a pré-história da Lava-Jato, como a prova de que a corrupção na Petrobras não nasceu no governo do PT.
Se o PMDB não controla as dissidências de seus aliados, tampouco comanda os peões de seu tabuleiro. Não há sinais de que a mobilização convocada para domingo venha a repetir aquelas ocorridas em março ou abril, época em que a opinião pública ainda não conhecia a desenvoltura do presidente da Câmara no submundo da Lava-Jato.
Nenhum dos obstáculos à estratégia pemedebista, no entanto, parece tão concreto quanto o do Judiciário. O presidente da Câmara age como se sua própria condição de réu já seja um fato consumado. Abusa das prerrogativas do cargo como se não houvesse amanhã. Vide, por exemplo, como a mesa diretora da Casa impôs a destituição do relator do Conselho de Ética, Fausto Pinato (PRB-SP), um dia depois de o ministro Luís Roberto Barroso tê-la negado.
Enquanto Eduardo Cunha dá encaminhamento célere ao pedido de impeachment, o conselho que analisa a denúncia contra si concluiu sua sexta sessão ontem sem votar a admissibilidade do processo graças às manobras regimentais de seus aliados.
Além de Marco Aurélio Mello, Barroso foi um dos ministros que sinalizou ontem ser favorável à liminar concedida por Fachin suspendendo a tramitação do processo de impeachment. A decisão, a ser analisada pela totalidade dos ministros, no entanto, está longe de ser pacífica na Corte. Recursos pela suspensão do impeachment já foram recusados pelos ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello.
No ação do PCdoB, o partido pede que o Judiciário ocupe a lacuna aberta pelo Congresso que se eximiu de compatibilizar a lei do impeachment, de 1950, com o amplo direito de defesa garantido pela Constituição de 1988. Não foi Eduardo Cunha quem subordinou a vida política à judicialização, mas foi sob seu reinado que o Congresso capitulou na arbitragem de conflitos de uma sociedade em mudança. Adia o desfecho judicial e parlamentar para tirá-lo do jogo, mas vai virar fusível do PMDB.
Se a política pudesse atravessar esse processo sem recorrer ao Judiciário talvez tivesse uma chance de recuperar seu protagonismo, mas os partidos quiseram se valer da folha corrida de Eduardo Cunha para colocar um constitucionalista na Presidência. O PMDB tenta reinventar seu próprio pecado, que não é pequeno nem fato consumado.
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