• O impeachment somente poderá apontar uma saída positiva para a crise se for reconhecido como um “rito de passagem” pela sociedade, no qual todos se sintam como parte
- Correio Braziliense
Ritos de passagem são objeto de estudo da antropologia, principalmente para o estudo das religiões. Batizados, casamentos, funerais, são exemplos triviais desse tipo de celebração, que, em geral, marca a transição de um estado para outro na vida de indivíduos ou comunidades, do mito egípcio de Osíris ao Ifá do nosso candomblé. Um dos estudiosos dos ritos primitivos das tribos africanas, Victor Turner, na década de 1960, desenvolveu o conceito de “comunita”, no qual os participantes do rito adquirem uma segunda identidade, a “persona”.
Psicólogos também se utilizam do conceito de “persona” para explicar certas atitudes e comportamentos, “uma espécie de máscara, projetada por um lado, para fazer uma impressão definitiva sobre os outros, e por outro, dissimular a verdadeira natureza do indivíduo” (Carl Gustav Jung), que pode se referir a um status social, às questões de gênero ou mesmo ao exercício de determinada profissão. A bagunça na política brasileira é tamanha que é o caso de recorrer a esses conceitos antropológicos para explicar certas situações. É que os políticos vivem da própria imagem e tudo fazem para construí-la, mas isso não depende somente deles, mas do papel que lhes é atribuído pela sociedade. No momento, a política brasileira tem quatro grandes atores em cena, cada qual interpretando um papel em causa própria:
A presidente Dilma Rousseff, cuja popularidade despencou em razão da crise econômica, procura manter-se distante dos escândalos de corrupção envolvendo seu governo, seu partido e, mais recentemente, seu líder no Senado, Delcídio do Amaral (PT-MS), que negocia delação premiada com o Ministério Público Federal. Mas sucumbe diante da crise ética, política e econômica sem precedentes, que pode resultar no seu afastamento. Agarra-se com unhas e dentes à imagem de mulher imaculada para se manter no cargo, porém, pode ser enquadrada em crime de responsabilidade pelo Congresso por causa das “pedaladas fiscais” e outros atos administrativos considerados ilegais.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cuja imagem está ameaçada pela lama da Operação Lava Jato, tenta organizar uma campanha para manter Dilma no cargo, mas, estranhamente, orientou a cúpula e a bancada do PT na Câmara a detonar o acordo que havia sido feito pelo Palácio do Planalto com o presidente da Casa, Eduardo Cunha, para barrar o impeachment. Sente-se ameaçado pela quebra dos sigilos bancário e fiscal de seu filho Luís Cláudio Lula da Silva e da empresa dele, a LFT Marketing Esportivo, assim como o do ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República Gilberto Carvalho, um de seus mais próximos e leais colaboradores.
O vice-presidente Michel Temer, que sempre foi um estranho no ninho no Palácio do Planalto, tornou-se uma alternativa de poder coma a abertura do processo de impeachment. Procura manter uma imagem de esfinge, que nada tem de egípcia. Já deixou claro que está pronto para assumir o poder se o processo contra Dilma no Congresso levá-la ao afastamento. Escanteado por Dilma na última reforma ministerial, acaba de retomar o controle da bancada do PMDB da Câmara. Articulou com Cunha a destituição do jovem líder Leonardo Picciani (RJ), que o desafiou publicamente, e pôs no seu lugar um tocaio, Leonardo Quintão (MG), seu aliado. Temer tem um plano contra a crise que recebe crescente apoio dos meios empresariais e da oposição.
O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que usa todo o seu poder para manter-se no cargo, embora esteja sendo processado na Comissão da Ética da Câmara por quebra de decoro parlamentar: mentiu ao dizer na CPI da Petrobras que não era dono de contas na Suíça, o que depois foi confirmado pelas autoridades daquele país. Cunha deu a partida ao processo de impeachment da presidente Dilma proposto pela oposição, com base no pedido assinado pelos juristas Miguel Reale Júnior, Hélio Bicudo e Janaína Paschoal. Foi uma retaliação ao fato de a bancada do PT decidir votar contra a sua cassação, implodindo o acordo que havia negociado com Palácio do Planalto. Como não conta com os votos de oposição, é um político marcado para ser cassado por seus pares, mas ainda tem força para obstruir a própria cassação.
Ruptura
Os quatro protagonistas fazem parte da coalizão que governa país, a (des)aliança PT-PMDB, o que embaralha as cartas, pois a oposição, representada pelo PSDB, DEM, PPS e Solidariedade não têm força para decidir o destino de Dilma Rousseff sem o PMDB e outros partidos da base governista. O colapso de coalizão presidencial, a partir da implosão do seu sistema de financiamento pela Operação Lava Jato, inviabiliza qualquer solução que tente restabelecer o status quo político anterior, além do fato de que alguns de seus principais integrantes estão envolvidos no escândalo da Petrobras. Eis o xis da questão.
Não há saída para a crise tríplice sem uma ruptura política com esse esquema de poder, que pode se dar de duas maneiras: pela via eleitoral, em 2018, ou por meio do impeachment, que abreviaria a sangria política e a bancarrota econômica. No momento, porém, o debate do impeachment no Congresso é uma espécie de dança com lobos, um rito selvagem, que deixa a sociedade estupefata. O impeachment somente poderá apontar uma saída positiva para a crise se for reconhecido como um “rito de passagem” pela sociedade, no qual todos se sintam como parte da “comunita”. É aí que entra em cena o mais novo participante dessa dança com lobos, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Edson Fachin.
Ao sustar a instalação da comissão especial eleita pela oposição para apreciar a admissibilidade do processo de impeachment e anunciar que pretende propor ao plenário do STF um rito completo para o processo de impeachment, com base na Constituição e na lei que regulamenta o dispositivo, de 1950, Fachin pretende ditar as regras do jogo. “Disso resultará um procedimento que permitirá que o impeachment seja desenvolvido e processado sem nenhuma arguição de mácula”, disse. Desde que não usurpe atribuições do Congresso, e arraste o STF para o centro de uma crise política que já paralisa o Executivo e o Legislativo, Fachin pode acabar com os casuísmos de Eduardo Cunha (PMDB) na condução dos trabalhos da Câmara, que têm objetivo de truncar o seu próprio processo de cassação no Conselho de Ética.
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