- O Globo
Há dois dias, o presidente turco Recep Erdogan visitou a Rússia, num gesto de reconciliação com Vladimir Putin. Domingo passado, mais de um milhão atenderam à convocação oficial para a manifestação “Democracia e Mártires”, em Istambul. Entre as gigantescas bandeiras turcas que adornavam o palco, destacavam-se cartazes com as imagens de Kemal Ataturk, o fundador da Turquia moderna, e do próprio Erdogan. O evento foi coreografado como demonstração de unidade nacional, com líderes de partidos oposicionistas e autoridades religiosas no palco, mas os circundantes apenas realçavam a centralidade do presidente. Do golpe militar frustrado de julho, emerge a figura de um novo sultão otomano, que enfeixa poderes extraordinários e ergue os alicerces de um regime autoritário.
A escalada autoritária começou anos atrás, ganhando ímpeto com a violenta supressão dos protestos populares na Praça Taksim, no verão de 2013. A repressão à imprensa independente ganhou justificativa pela difusão da lenda conspirativa que atribui toda e qualquer crítica ao governo à rede política dirigida pelo clérigo moderado Fethullah Gülen, um ex-aliado de Erdogan convertido em inimigo e autoexilado nos EUA. Na sequência, diante das contestações internas ao envolvimento turco na guerra síria, o governo aproveitou-se de atentados cometidos pelos separatistas curdos do PKK para reativar a guerra interna contra a minoria curda.
Os protestos da Taksim começaram quando o governo anunciou a construção de um shopping, cuja arquitetura simulava um quartel otomano, no popular Parque Gezi. A manifestação de domingo foi transmitida ao vivo, em telões, para quase todas as cidades turcas. “Aqui, erguemo-nos juntos, como uma única nação, uma única bandeira, uma só pátria, um só Estado e um espírito monolítico”, clamou o presidente. Uma banda em trajes tradicionais otomanos animou o evento, num toque de fundo simbolismo: na sua reinvenção da Turquia, Erdogan combina elementos de otomanismo e islamismo. O pretendente a sultão acalenta o projeto de alterar a Constituição, de modo a concentrar poderes na figura do presidente. Os espectros do “inimigo interno” (Gülen) e do “inimigo externo” (os curdos) proporcionam-lhe a oportunidade de acender a fogueira do nacionalismo turco.
Um contragolpe está em curso. Mesmo sem provas convincentes, Erdogan aponta o dedo acusador para Gülen, usando-o como pretexto para promover expurgos em massa no seu partido e no funcionalismo público, prender milhares de soldados e policiais, processar jornalistas, intelectuais, ativistas políticos e sindicalistas. Fantásticas teorias conspirativas estendem-se perigosamente além do suposto “Estado paralelo” de Gülen. Um ministro, deputados oficialistas e jornais governistas sugeriram, sem nenhuma evidência, que os serviços secretos americanos seriam os verdadeiros articuladores do golpe militar que deixou 240 mortos. Logo após a tentativa de golpe, o governo turco interrompeu temporariamente o fornecimento de energia elétrica à base aérea de Incirlik, usada pelos EUA na campanha de bombardeios contra o Estado Islâmico.
Diante dos pedidos de moderação de Angela Merkel e dos protestos de John Kerry, Erdogan ofereceu réplicas desafiadoras, estremecendo as relações turcas com o Ocidente. O secretário de Estado americano treplicou, esclarecendo que a continuidade da repressão indiscriminada na Turquia “seria um grande desafio para as suas relações com a Europa, a Otan e todos nós”. Do lado oposto, Vladimir Putin ofereceu a integral solidariedade russa à escalada repressiva do governo turco, preparando o palco para a visita de Erdogan à Rússia.
A Turquia não é um país qualquer. Integrante estratégica da Otan, guarda o Mediterrâneo Oriental e os estreitos que conectam a frota russa ao mare nostrum europeu. Candidata ao acesso à União Europeia, funciona como ponte entre Europa e Oriente Médio — e, hoje, como zona de contenção do fluxo de refugiados sírios que almejam asilo na Alemanha. Por tudo isso, a aproximação de Erdogan com Putin — sinalizada ainda antes do golpe frustrado por um pedido de desculpas do presidente turco pela derrubada de um caça russo que operava na Síria — toca em nervos geopolíticos altamente sensíveis.
Tudo que é sólido parece desmanchar-se no ar. A marcha autoritária de Erdogan é o terceiro golpe sucessivo nos pilares da ordem estabelecida no pós-Guerra Fria. O primeiro, em 2014, foi a invasão e anexação russa da Crimeia ucraniana, que dissolveu a crença na segurança das fronteiras internacionais na Europa. O segundo, menos de dois meses atrás, foi a decisão britânica de abandonar a União Europeia, que destruiu a noção da perenidade do bloco supranacional europeu. Agora, descortina-se o cenário de uma Turquia autoritária em ruptura com o Ocidente, que impugna a convicção no triunfo definitivo da democracia no espaço europeu externo à influência russa. Putin pode celebrar a desmontagem do quadro de referências nascido após a queda do Muro de Berlim, evento que ele qualificou como “a maior catástrofe geopolítica do século XX”.
Num outro plano, a erosão das liberdades públicas na Turquia confere verossimilhança à narrativa ideológica dos neoconservadores sobre o “choque de civilizações”, que se baseia na tese da incompatibilidade entre a democracia e o Islã. Se a Turquia moderna e secularista retrocede ao autoritarismo, como acreditar nas chances de reforma democrática nos países muçulmanos do Oriente Médio e da África do Norte? Depois de flertar com organizações jihadistas envolvidas na guerra síria e de extinguir o processo de paz com os curdos, o novo sultão turco oferece um álibi perfeito aos partidos da extrema-direita europeia engajados em projetos nativistas e ultranacionalistas. Certamente não foi para isso que, resistindo aos militares golpistas, morreram na rua tantos turcos.
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Demétrio Magnoli é sociólogo
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