quinta-feira, 11 de agosto de 2016

A anistia da Lava-Jato - Maria Cristina Fernandes

• Alvo da proposta em discussão é separar caixa 2 de propina

- Valor Econômico

A reta final do impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff coincide com o avanço, nos bastidores do Congresso, de uma anistia para uma parcela dos políticos que tiveram seus nomes envolvidos na Operação Lava-Jato. A ideia transita na cúpula dos Poderes Legislativo e Executivo. Já estava em pauta com a perspectiva de o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), sem mandato, vir a fazer delação premiada e ganhou força com o acordo, em fase final de negociação, entre o Ministério Público e Marcelo Odebrecht.

Um grupo de advogados com clientes na Lava-Jato começou a discutir a minuta de uma proposta que tanto pode vir a entrar na negociação das dez medidas anticorrupção, que tramitam no Congresso, quanto pode constar da reforma política que estará em pauta depois das eleições municipais.


O centro da proposta é a distinção entre caixa dois e propina. A legislação já os distingue mas a partir de uma fronteira cinzenta que não impediu a Lava-Jato de juntar os dois crimes no mesmo balaio.

Os grandes acordos de delação premiada, tanto o de Marcelo Odebrecht quanto o das demais empreiteiras envolvidas na operação, só evoluem a partir desta alquimia. Não é difícil obter uma confissão de caixa dois, crime eleitoral de baixo potencial punitivo. Mais difícil é arrancar dos empreiteiros a relação de atos prometidos a partir de doação ilegal. É isso que constitui corrupção.

A anistia que se começa a discutir no Legislativo avinagra o principal conteúdo das delações e deve enfrentar forte reação no Ministério Público. Um de seus integrantes acaba de anunciar, na Câmara que a Lava-Jato cumpriu apenas um quinto de suas tarefas.

A inclusão da anistia no debate das medidas anticorrupção seria a senha da negociação do pacote. A despeito da grande reverência com a qual o juiz Sergio Moro foi tratado, na semana passada, ao defender as medidas em audiência da comissão especial, o pacote que, entre outras medidas, agrava a punição do caixa dois, traz imenso desconforto aos parlamentares.

Os artigos que tratam do alongamento dos prazos da prescrição penal e aqueles que limitam os recursos à disposição dos réus são o limite do que o Congresso pode vir a aceitar das medidas do Ministério Público. Em troca, a proposta ganharia o jabuti da anistia.

Dado o poder de mobilização do Ministério Público, que colheu 2 milhões de assinaturas em apoio ao projeto, prevê-se reação estratosférica. Com a entrada em pauta, em novembro, da reforma política seria aberta uma janela à tramitação da proposta.

Um de seus maiores defensores, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), nega que a ideia já esteja formatada, mas reconhece discussões no sentido de separar crime eleitoral de propina. Maia trabalha para que, depois das eleições, quando prevê um grande desarranjo decorrente da proibição das doações empresariais, o Congresso aprove o fim das coligações, para enxugar o sistema partidário, e institua o modelo de lista fechada com o qual prevê campanhas mais baratas.

O discurso a ser adotado pelos parlamentares como vacina no acirrado debate público por vir é o de que a história do país se constrói num pomar de anistias. Foi neste terreno que brotou a Nova República. É por meio de sucessivos Refis que muitas empresas permanecem em funcionamento. O acordo em negociação com os Estados também prevê, em larga medida, um perdão de seus crimes de responsabilidade fiscal. O capital refugiado também receberá as bênçãos de uma anistia em sua repatriação. E, por fim, muitos contribuintes não conseguiriam se regularizar sem anistias periódicas de IPTU promovidas pelas prefeituras.

Não parece haver dúvida de que o Judiciário, frente à contra-delação, saia à frente no quesito apoio popular. Mas o Congresso tem um calendário eleitoral a seu favor. Espera-se desta disputa municipal sem dinheiro empresarial uma inflação de eleitos com curral cativo (comunicadores e igrejeiros) ou conta bancária recheada (empresários).

A iniciativa parlamentar buscaria legitimidade na deterioração da representação política a partir da tentativa de apartar a política do seu leite materno. A substituição de Fernando Haddad por Celso Russomano na maior cidade do país seria o principal símbolo da mudança para pior da política sob o signo da Lava-Jato.

A narrativa parte do pressuposto de que só há dois tipos de políticos, os que recebem por fora para se enriquecer e aqueles que o fazem para se eleger. Condenar Eduardo Cunha e José Serra ao mesmo vaticínio seria decretar a morte da política e entregar o país para o Ministério Público governar. Passado o impeachment, a cassação do ex-presidente da Câmara marcaria o fim da transição para a era dos redimidos.

Entre os poucos que, no Congresso, se dispõem a falar sobre o tema, há expectativa de que um meio empresarial com ícones como Luiz Carlos Trabuco e Joseph Safra na linha de tiro, veja com simpatia a reação legislativa. Este aval é a maior aposta parlamentar para o rompimento da aliança indissolúvel entre imprensa e Ministério Público.

O capítulo mais delicado é o envolvimento do Palácio do Planalto. Se Michel Temer aparecer como avalista, o vaticínio dos grampeados do ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, cai como uma espada sobre sua cabeça. O impeachment, finalmente consolidado, teria o objetivo de riscar no chão os limites da Lava-Jato.

Quando esta proposta vier a ser formatada, Temer estará desprovido dos biombos com os quais governou até aqui. Sem a sombra de Dilma Rousseff, será mais diretamente cobrado por resultados, seja por quem quer sangue, seja por aqueles que pedem atadura. Não se descarte, ainda, a possibilidade de o Ministério Público, em reação, acelerar o capítulo Jaburu de suas investigações. O presidente interino não precisa consultar a Constituição para saber o que uma gestão sem resultados, somada a revolta popular contra um abafa sob patrocínio estatal, produziria sobre seu mandato.

A afinação entre Rodrigo Maia e o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), mais próximo do que nunca do Palácio do Planalto, dispensa um maior envolvimento de Temer nas tratativas. Nenhum aliado da anistia, no entanto, é mais poderoso do que a decadência de uma esquerda que, de porta-voz da decência, tornou-se potencial beneficiária do acordo.

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